sexta-feira, 16 de fevereiro de 2018

DOM PEDRO CASALDÁLIGA – OS 90 ANOS DE UM PROFETA VIVENTE

Por Pe. José Artulino Besen

Dom Pedro Casaldáliga – força e fragilidade de um profeta

Pedro Casaldáliga, Dom Pedro, nasceu em 16 de fevereiro de 1928 em Bolsareny, Espanha. Ingressou na Congregação dos Claretianos e foi ordenado padre em 1952. Vocação missionária, chegou ao Brasil em julho de 1968, na época mais dura da ditadura militar. Foi ordenado primeiro bispo de São Felix do Araguaia, Mato Grosso, em 23 de outubro de 1971. Seu compromisso cristão com os mais pobres ficou claro em sua primeira carta pastoral: “Uma Igreja da Amazônia em conflito com o latifúndio e a marginalização social”.

Adotou como lema para sua atividade pastoral Nada Possuir, Nada Carregar, Nada Pedir, Nada Calar e, sobretudo, Nada Matar.

Em pouco tempo sua figura transcendeu os limites da diocese, pois contribuiu decisivamente na fundação de duas entidades-chave na história da Igreja brasileira: a Comissão de Pastoral da Terra (CPT) e o Conselho Indigenista Missionário (CIMI), organismos fundamentais na luta em favor da Reforma Agrária e do respeito aos povos indígenas brasileiros.

Incansável lutador, viveu o tempo e a espera:

“É tarde / mas é nossa hora. / É tarde / mas é todo o tempo / que temos à mão / para fazer futuro. / É tarde / mas somos nós / esta hora tardia. / É tarde / mas é madrugada / se insistimos um pouco.”

Dom Casaldáliga é o bispo dos pobres, que nunca se submeteu aos poderosos, e continua cercado pelos pobres, tendo sua casa aberta para todos. Um bispo corajoso que nunca se calou no meio dos problemas.  Característica marcante de sua atuação como bispo foi o fato de preferir não utilizar os tradicionais trajes eclesiásticos: em vez da mitra, preferiu o chapéu de palha, em vez de um anel dourado, um anel de tucum.

Suas causas, as causas  a que entregou sua vida: a causa da Terra, dos indígenas, da mulher marginalizada, do povo negro, a causa ecológica. Dom Pedro encarna perfeitamente o bispo do Evangelho e o bispo da primavera de Francisco. É um santo vivo, pouco valorizado pela Igreja. Talvez seja o último profeta vivo, à altura de Dom Helder Câmara e Dom Oscar Romero. Nele convergem múltiplas dimensões: missionário a serviço da libertação, profeta despertador de consciências, místico que descobre a Deus nos empobrecidos, poeta cuja palavra encarnada provoca revoluções, teólogo que se solidariza, bispo em fidelidade rebelde e insurreição evangélica, e por isso, sempre sob suspeita.

Em junho de 2017, o  Cardeal Dom Cláudio Hummes foi visita-lo. Viu-o bastante fragilizado por causa da idade e do mal de Parkinson que o incapacita na comunicação, com dificuldade de falar, mas acompanha muito bem, continuando muito lúcido. Dom Cláudio comenta: “permanece ali na região onde sofreu muita perseguição, muitas ameaças de morte… no entanto, nunca teve medo. Sempre esteve à frente de seu povo, dando coragem, dando esperança, denunciando. Foi o primeiro a denunciar o trabalho escravo, o que lhe trouxe muita perseguição”.

Residência episcopal de Dom Pedro Casaldaliga
Dom Pedro, mesmo com dificuldade para falar, deixou-lhe dois recados importantes: “Uma das palavras que a gente sempre entende quando ele fala, com a voz muito sumida, é ‘esperança’, que não percam a esperança. Ele acompanha, recebe as notícias do que está ocorrendo no Brasil”. “Também outra palavra que me disse em um certo momento, que era para dizer ao Papa Francisco que ele está plenamente apoiando o Papa em todo o seu trabalho. A gente via como ele está feliz com o Papa Francisco”.

Grande desafio que enfrentou na região de São Félix do Araguaia (no Mato Grosso), onde está localizada a Terra Indígena Xavante-Marãiwatsédé, foi um dos principais cenários dos enfrentamentos da guerrilha contra a ditadura durante os anos de 1960 e 1970. As tensões entre os que combatiam e os que atuavam em favor do regime militar sufocaram as disputas entre índios e não índios. Escreveu às autoridades: “Gostaria muito que as autoridades revisem a decisão da Advocacia-Geral da União sobre a demarcação de terras porque, do contrário, pode ser criada uma nova ordem de insegurança em várias regiões do país”. A defesa corajosa da terra indígena Xavante foi longa, corajosa e trouxe a vitória com a demarcação das terras. Sua luta incansável repercutiu na redação da Constituição de 1988, com o reconhecimento das terras indígenas.

A defesa da terra indígena lhe trouxe muitas ameaças de morte, a mais grave delas sendo em 1976, na região de Ribeirão Bonito, quando assumiu a defesa de mulheres torturadas em uma delegacia de polícia. Na ditadura militar, foi alvo de cinco processos de expulsão do Brasil, mas teve sempre o apoio fraterno do papa Paulo VI.

Romaria dos Mártires

A Romaria dos Mártires foi criada por Casaldáliga para homenagear, como conta, todos aqueles que “deram a vida pela vida”, no Brasil e na América Latina. São vários os mártires homenageados: Chico Mendes,  Antônio Conselheiro, o bispo salvadorenho Oscar Romero, reconhecido como santo pelo papa Francisco, além do índio pataxó Galdino Jesus dos Santos, queimado vivo por jovens enquanto dormia numa praça em Brasília, e a missionária americana Dorothy Stang, assassinada a mando de fazendeiros no Pará.

A inspiração maior do evento, contudo, foi o padre João Bosco Burnier, assassinado em Ribeirão Cascalheira, ao lado dele, em 11 de outubro de 1976. O episódio ganhou repercussão internacional.

Padre franciscano nascido em Minas Gerais, Burnier atuava em Diamantino, no oeste do Mato Grosso, e viajou à região do Araguaia para participar de uma reunião do CIMI em Santa Teresinha, no norte de São Félix do Araguaia. O encontro reuniu lideranças locais e religiosos envolvidos na causa indígena.

Dias após a reunião, Casaldáliga e Burnier pegaram um ônibus em São Félix do Araguaia rumo a Barra do Garças. Em Ribeirão Cascalheira, no meio do caminho, decidiram pernoitar. O pequeno povoado, à época distrito de Barra do Garças, realizava naquela noite uma festa para Nossa Senhora Aparecida, mas o clima era de terror. O motivo foi a morte de um cabo da Polícia Militar no povoado, segundo Casaldáliga um agente conhecido “pelas arbitrariedades e crimes”, que trouxe ao local um grande contingente de policiais.

Anos depois, Dom Pedro publicou um relato, intitulado Martírio do padre João Bosco Burnier, pelas Edições Loyola, sobre aquela noite: “Duas mulheres estavam sofrendo na delegacia, impotentes e sob torturas: um dia sem comer e beber, de joelhos, braços abertos, agulhas na garganta, sob as unhas. Ouviam-se os gritos da rua.

As mulheres foram detidas porque, suspeitava a polícia, sabiam do destino do rapaz acusado de matar o PM. “Decidi ir à delegacia, interceder por elas. O padre João Bosco fez questão de me acompanhar”, escreveu Casaldáliga. Segundo ele, o diálogo com os policias durou de três a cinco minutos, com os agentes fazendo seguidas ameaças e insultos. Quando o padre João Bosco disse aos policiais que denunciaria aos superiores dos mesmos as arbitrariedades que vinham praticando, o soldado Ezy pulou até ele, dando-lhe uma bofetada fortíssima no rosto. Inutilmente tentei cortar aí o impossível diálogo. O soldado, seguidamente, descarregou também no rosto do padre um golpe de revólver, e num segundo gesto fulminante, o tiro fatal, no crânio”.

Os moradores de Ribeirão Cascalheira ainda tentaram socorrer o padre levando-o para Goiânia num pequeno avião, mas ele chegou morto à cidade.

O assassinato de João Bosco Burnier levou a população de Ribeirão Cascalheira a um ato de desobediência civil – e em plena ditadura. Após a missa de sétimo dia, realizada no povoado, os moradores se dirigiram à delegacia e começaram a depredá-la. O posto policial, na beira da BR-158, foi destruído – os policiais nada puderam fazer para conter a fúria popular.

Meses antes, naquele mesmo ano de 1976, outro crime no Mato Grosso vitimou um padre. Em julho, o missionário alemão Rodolfo Lunkenbein, que atuava na região, e o líder indígena Simão Bororo foram assassinados por ex-moradores retirados da área onde se demarcou a terra indígena de Meruri, próximo de Barra do Garças. Eles também são homenageados na Romaria dos Mártires.

Após a morte de João Bosco Burnier e a destruição da delegacia, os  moradores de Ribeirão Cascalheira fizeram uma campanha, com o apoio de Casaldáliga, para que no local fosse construída uma igreja. O Santuário dos Mártires acabou sendo erguido a cerca de 200 metros de onde morreu o padre – a polícia foi contra a construção da igreja na mesma área da delegacia, onde atualmente existe uma pequena capela em homenagem ao Padre Burnier. Está exposta nas galerias do santuário, ainda com marca de sangue, a camisa usada pelo mártir na noite em que foi assassinado.

“Vamos tocando o barco, com fé e esperança”

A primeira vez que saiu do país foi no início dos anos 1990, indo ao Vaticano para uma audiência com o papa João Paulo II. Os parentes espanhóis viajaram até Roma para encontrá-lo. Dom Pedro não cumpria a obrigação da Visita Ad Limina, que os bispos devem fazer a cada cinco anos, para um encontro com o Papa e os Dicastérios romanos. Afirmou que esse dinheiro seria melhor empregado em ações com os pobres de sua Prelazia. Além disso, Dom Pedro tem clareza a respeito das Igrejas locais: o Papa é bispo de Roma, Dom Pedro é bispo de São Félix do Araguaia. Seu amor à liberdade inspirou sua luta contra a centralização do governo da Igreja, pois considera que a visão de Roma é apenas uma entre as várias possíveis, e que a Igreja deveria ser uma comunhão de igrejas. Acha que se deve falar da Igreja que está em São Félix do Araguaia, assim como se fala da Igreja que está em Roma, pois unidade não tem que ser sinônimo de centralização e sim de descentralização.

“Toda romaria ele fala que é a última. Foi assim na de 2016. Nesta, para ele participar, já foi um grande sacrifício. Vamos ver na próxima, daqui a cinco anos”, comentava o padre André Pereira, da prelazia. Dom Pedro não gostou de ser levado de avião, pois preferia ir com os meios de transporte do povo…

Na noite de abertura, Dom Pedro permaneceu apenas 40 minutos, rodeado pela multidão, que o fotografava sem parar. Antes de a procissão partir da igreja central até o santuário, na entrada da cidade, o bispo acompanhou a apresentação teatral e as danças da abertura.

No domingo, dia 17, Dom Casaldáliga foi para o santuário participar da missa de encerramento. Pela primeira vez na história da romaria, ele não conduziu missa nem fez pronunciamento. Sintoma do “irmão Parkinson”, como ele já definiu a doença degenerativa que enrijece os músculos, sua fala está cada vez mais prejudicada, o que demanda quase sempre um “tradutor” para ser compreendido.

De acordo com os auxiliares que o acompanham, o bispo não reclama muito de sua condição nem fala sobre a morte. Ele continua disciplinado como antes, garantem, e se adaptou às complicações da doença, como a dificuldade de deglutição e a rotina de exercícios físicos da fisioterapia. Um tombo que levou no início desta década fez com que ele ficasse permanentemente preso à cadeira de rodas.

Pedro Casaldáliga continua inquieto. Também poeta, ele acompanha com interesse os desdobramentos da crise política no Brasil. Em 2016, na penúltima romaria, ele comentou com os auxiliares que seria a sua última, já que na próxima ele provavelmente estaria “nos braços do Pai”.

Em julho, após fazer sua oração matinal diária na capela dos fundos de sua casa, em São Félix, o religioso mantinha-se otimista: “Fé e esperança. Sempre. Vamos, enquanto isso, tocando o barco”.

Belíssimo seu poema-testamento: “Ao final do caminho, me perguntarão: Viveste? Amaste? E eu, sem nada dizer, abrirei meu coração cheio de nomes”.


Nenhum comentário:

Postar um comentário