domingo, 31 de dezembro de 2017

O que faz crianças de áreas pobres dos EUA desenvolverem traumas mentais similares aos de guerras

BBC Brasil

Participante de análise de trauma na cidade de Atlanta, uma das 20 mais violentas dos Estados Unidos

"Às vezes, tenho dificuldades para dormir porque posso escutar os disparos, como se estivessem grudados na minha orelha", conta Laquita Duvall, mãe de dois préadolescentes.

Ela vive em um subúrbio da cidade de Atlanta, capital do Estado da Geórgia, uma das 20 cidades mais violentas dos Estados Unidos, segundo dados do FBI de 2016.

A cidade foi foco de um dos maiores estudos científicos nacionais sobre o transtorno de estresse pós-traumático em centros urbanos, uma condição tradicionalmente associada a traumas de guerra.

Segundo os resultados da pesquisa, entre os moradores de bairros pobres de Atlanta a prevalência do transtorno de estresse pós-traumático era de 46%, muito maior que a identificada entre os veteranos das guerras do Iraque e do Afeganistão (entre 11% e 20%).

Para as crianças em particular, os bairros mais pobres de Atlanta podem parecer um verdadeiro campo de batalha, como constatou o repórter da BBC Aleem Maqbool, enviado à cidade.
'Guerra urbana'

Basta um passeio de carro pelas zonas mais desfavorecidas para se deparar com ambiente hostil - no qual crescem muitas crianças.

"Abuso de drogas, atividades de grupos criminosos, disparos, tiros de carros em movimento... há muitas coisas com as quais as crianças precisam lidar e que não são experiências típicas para essa idade", afirmou a tenente Shavonne Edwards, do escritório do xerife do Condado de Fulton.

"Para eles, 'a guerra' pode ser desde um tiroteio entre gangues rivais, até caminhar pela rua e pisar em uma seringa ou ver alguém usando drogas. Isso é 'a guerra'", acrescentou.

"Estas crianças veem essas coisas diariamente e podem pensar que é normal, mas nós sabemos que não é."

Algumas dessas experiências potencialmente traumáticas são comuns em muitos bairros da América Latina. Mas chama a atenção que isso também ocorra nos Estados Unidos, o país mais rico do mundo.

'Minha mãe entrou e falou para nos deitarmos no chão e não nos levantarmos até que (o tiroteio) acabasse', recorda Angel


Impacto no cérebro

O índice de assassinatos com arma de fogo nos Estados Unidos é muito maior do que em qualquer outro país desenvolvido.

Por isso, nas periferias das cidades americanas, é comum o contato com a violência urbana.

Na realidade, faz pouco tempo que o transtorno de estresse pós-traumático foi reconhecido como uma condição mental também entre os civis.

Agora, vários pesquisadores estão estudando o impacto que este transtorno tem sobre o desenvolvimento de crianças.

"No bairro, as crianças podem escutar um foguete e isso pode soar como um disparo, gerando nelas uma resposta de pânico", explica Tanya Jovanovic, diretora do projeto Grady Trauma.

"Podem experimentar um aumento do suor e das palpitações... na linguagem médica, chamamos isso de hipervigilância: a incapacidade de sentirem-se seguros", afirmou.

"Tanto seus cérebros como seu corpo crescem em ritmo mais acelerado. Seus cérebros estão se adaptando a esses disparos e a esta violência na cidade, e podemos ver isso nos scanners", acrescentou.

'Sempre em perigo'

Segundo a especialista em trauma, as experiências às quais as crianças estão expostas fazem com que seus cérebros cresçam mais rapidamente.

Como consequência, elas têm mais dificuldades de aprendizagem e para construir relacionamentos. Além disso, são mais propensas a desenvolver depressão e se envolver com drogas.

"Ao contrário dos soldados, que voltam para casa e deixam de estar em um ambiente perigoso, muitas das crianças do nosso estudo continuam vivendo nesse ambiente", disse Jovanovic.

'No chão'

Angel e sua mãe participaram por acaso no estudo do projeto Grady Trauma. Sua experiência de vida é típica do bairro onde vivem.

"Estávamos na cama e começaram a disparar. Então, minha mãe entrou e falou para nos deitarmos no chão e não nos levantarmos até que (o tiroteio) acabasse", lembra Angel, pré-adolescente, com um meio sorriso, que contrasta com a gravidade da história que está contando. "Depois pararam e morreu uma pessoa. Aí, veio a polícia."

As crianças podem pensar que a violência urbana é "normal", mas nós sabemos que não é, diz a tenente Shavonne Edwards

"Às vezes, quando as crianças descem do ônibus escolar, escutamos disparos que vem do complexo de apartamentos ao lado", relata sua mãe, Laquita Duvall.

Segundo os pesquisadores, os níveis de transtorno de estresse pós-traumático nos bairros de periferia dos Estados Unidos são comparáveis aos encontrados em acampamentos de refugiados de muitos países do mundo.

Mas, por outro lado, passam despercebidos. E aqueles que sofrem com isso precisam lidar com a situação por conta própria. 


sexta-feira, 29 de dezembro de 2017

JÁ NOS CINEMAS: "O jovem Karl Marx"

Estreou no Brasil no dia 28 dezembro a cinebiografia da juventude de Karl Marx, dirigida pelo cineasta haitiano Raoul Peck (diretor do documentário indicado ao Oscar “Eu não sou seu negro”).
O longa será exibido em salas de cinema de São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília. Se você mora em outra cidade e gostaria de assistir ao filme no cinema, peça para as salas de exibição locais incluírem o filme em sua programação!






HORÁRIOS DE 28/12/17 a 03/01/18
SÃO PAULO
Caixa Belas Artes
16:00 ☭ 20:10
Espaço Itaú de Cinema - Augusta
14:20 ☭ 18:40 ☭ 21:20
Espaço Itaú de Cinema - Shopping Frei Caneca
14:30 ☭ 17:00 ☭ 21:40
RIO DE JANEIRO
Espaço Itaú de Cinema
17:10 ☭ 21:40
Estação Net Rio
14:30 ☭ 19:10
Estação Net Barra Point
14:05 ☭ 18:35
BRASÍLIA
Espaço Itaú de Cinema
16:30 ☭ 21:30
Cine Cultura Liberty Mall
14:20 ☭ 18:45 ☭ 21:05
☛ Assista ao trailer do filme: http://bit.ly/2CAe9N4

segunda-feira, 25 de dezembro de 2017

JESUS ERA BADERNEIRO COMUNISTA

Em sua coluna nesta segunda (25), Gregório Duvivier usou o Natal, e a mensagem de seu símbolo máximo, Jesus Cristo, para ironizar posições conservadoras no Brasil.



JESUS ERA BADERNEIRO COMUNISTA

Por Gregório Duvivier

"Só mesmo no Brasil que o país para pra celebrar o aniversário de um líder comunista. Pior que isso: um baderneiro terrorista bolivariano sem-terra defensor de bandido e da prostituição.

O sujeito perdoava até o roubo, mas não perdoava a riqueza. "É mais fácil passar um camelo pelo fundo de uma agulha", dizia ele, "do que um rico entrar no reino dos céus". Não sei se vocês já tentaram costurar usando um camelo. É dificílimo. E machuca à beça o camelo.

(...)

Olhem pra vida do rapaz: não acumulou riqueza, não se formou, ao invés disso vivia descalço cercado de leprosos defendendo bandido. Isso não significa, no entanto, que ele fosse paz e amor. O sujeito tava mais pra Marighella que pra Gandhi.

Quando entrou no templo e viu que tava cheio de caixa eletrônico, chutou —literalmente— o pau da barraca, como estivesse na loja da Toulon em 2013. Não sobrou pedra sobre pedra do templo de Salomão. O jovem black bloc bicou pro alto tudo quanto era maquininha da Cielo."

FONTE: Brasil 247

CARTA INÉDITA DE LEOCADIA PRESTES AO FILHO (LUIZ CARLOS PRESTES) NA PRISÃO



Leocadia Felizardo Prestes (1874-1943)

Paris, 6/3/1937

Meu querido filho.
Desejo de todo o coração que continues bem de saúde e ânimo forte. Até hoje nada recebi de tua parte, embora, muitas tenham sido as cartas enviadas para a prisão onde te encontras desde Março de 36. Ignoro se as recebeste. Hoje resolvi escrever-te de novo, esperando, desta vez, um melhor resultado, quer dizer, que te cheguem às mãos estas linhas, portadoras do nosso amor e  das nossas saudades, mas, principalmente para te dar uma gratíssima noticia que acabamos de receber.

A 27 de novembro nasceu em Berlim, em um hospital de uma prisão de mulheres, tua filhinha a quem nossa querida Olga deu o nome de Anita Leocadia, em honra à heroína brasileira Anita Garibaldi e em atenção à tua mãe. Que criatura admirável é tua esposa e como é digna de ti. Congratulamo-nos efusivamente contigo pelo auspicioso acontecimento. Depois dos transes por que passamos e da terrível incerteza que pesava sobre a sorte da heroica Olga e do precioso penhor que trazia em seu seio, podes bem imaginar a indescritível emoção que nos dominou e ao mesmo tempo a enorme alegria que encheu nossos corações ao termos conhecimento do feliz sucesso. A nossa heroica Olga, somente a sua calma e paciência com que soube suportar os terríveis sofrimentos morais por que passou devemos tão feliz acontecimento. Junto vai a carta que dela recebi, respondendo às que lhe havia escrito em Janeiro último, e assim ficarás ao par de alguns detalhes sobre o nascimento de tua filhinha. Além dessa carta de 31 de Janeiro, nenhuma outra recebi, porém, tenho escrito três vezes por mês, como determina o regulamento da prisão onde se encontra. Por intermédio de amigos, já lhe enviei um pequeno auxílio pecuniário, agasalhos, etc. Por esse lado podes ficar tranquilo, que não descuidaremos desses dois entes queridos e tudo envidaremos para que nada lhes falte. Estamos terminando um pequeno enxoval, todo feito por nós (eu e Lygia) que muito breve enviaremos para a muito querida Anita. Já enviei a Olga as fotografias pedidas. Agora falemos um pouco sobre tua situação, que, espero, deverá em breve sofrer algumas alterações. Não compreendo que continuemos sem poder corresponder-nos, porque nenhuma justificativa poderão apresentar para continuar a impedir a troca de cartas de família, e termos assim notícias uns dos outros. Espero com ansiedade, que me escrevas, pois desejaria tanto ver tua letra. Peço-te também que não deixes de me informar quais as tuas necessidades mais urgentes, e o que devo mandar primeiro. Sobre nós, tenho a dizer-te que vamos bem de saúde e de espírito, fortes e animadas para vencer todos os empecilhos que encontrarmos em nosso caminho. Podes ficar tranquilo. Eu mesma me admiro como pude resistir e suportar a mudança completa por que passou a minha maneira de viver. Estou certa que essa força a encontramos no muito amor que nos inspiras e no admirável exemplo que para nós representa tua vida toda de renúncias e sacrifício. Bem, meu querido filho, vou terminar, que esta já vai longa demais, porém antes quero lembrar-te que se puderes escrever a Olga, que se aflige sem notícias tuas, podes me enviar a carta que eu a transmitirei a ela. Tuas irmãs te abraçam e beijam-te com imenso cainho. Com um apertado e saudoso abraço envio os meus mais ardentes votos pela tua preciosa saúde. 

Tua extremosa mãe
(a) Leocadia Prestes



* FONTE: Arquivo do Tribunal de Segurança Nacional, Processo n. 1, Apelação 4.899 – Série A, Vol. 4, p. 143.

Conheça o site do Instituto Luiz Carlos Prestes, para acessar  material documental relacionado a Luiz Carlos Prestes e à Olga Benario Prestes.


domingo, 24 de dezembro de 2017

Os africanos que propuseram ideias iluministas antes de Locke e Kant

DAG HERBJORNSRUD
tradução CLARA ALLAIN
ilustração FABIO ZIMBRES

RESUMO Os ideais mais elevados de Locke, Hume e Kant foram propostos mais de um século antes deles por Zera Yacob, um etíope que viveu numa caverna. O ganês Anton Amo usou noção da filosofia alemã antes de ela ser registrada oficialmente. Autor defende que ambos tenham lugar de destaque em meio aos pensadores iluministas.

*

Os ideais do Iluminismo são a base de nossas democracias e universidades no século 21: a crença na razão, na ciência, no ceticismo, no secularismo e na igualdade. De fato, nenhuma outro período se compara à era do Iluminismo.

A Antiguidade é inspiradora, mas está a um mundo de distância das sociedades modernas. A Idade Média é mais razoável do que sua reputação sugere, mas ainda assim é medieval. A Renascença foi gloriosa, mas em grande medida graças ao seu resultado: o Iluminismo. O romantismo veio como reação à era da razão, mas os ideais dos Estados modernos não se expressam em termos de romantismo e emoção.

Segundo a história mais contada, o Iluminismo tem origem no "Discurso do Método" (1637), de René Descartes, continuou por cerca de um século e meio com John Locke, Isaac Newton, David Hume, Voltaire e Kant e terminou com a Revolução Francesa, em 1789 —talvez com o período do terror, em 1793.

Mas e se a história estiver errada? E se o Iluminismo puder ser associado a lugares e pensadores que costumamos ignorar? Tais perguntas me assombram desde que topei com o trabalho de um filósofo etíope do século 17: Zera Yacob (1599-1692), também grafado Zära Yaqob.

Yacob nasceu numa família pobre numa propriedade agrícola perto de Axum, a lendária antiga capital do norte da Etiópia. Como estudante, ele impressionou seus professores e foi enviado a uma nova escola para estudar retórica ("siwasiw" em ge'ez, a língua local), poesia e pensamento crítico ("qiné") por quatro anos.

Em seguida, estudou a Bíblia por dez anos em outra escola, recebendo ensinamentos dos católicos e dos coptas, bem como da tradição cristã ortodoxa, majoritária no país.

Na década de 1620, um jesuíta português convenceu o rei Susenyos a converter-se ao catolicismo, que não tardou a virar religião oficial da Etiópia. Seguiu-se uma perseguição aos livres-pensadores, mais intensa a partir de 1630. Yacob, que nessa época lecionava na região de Axum, havia declarado que nenhuma religião tem mais razão que outra —e seus inimigos o denunciaram para o rei.

Yacob fugiu, levando apenas um pouco de ouro e os Salmos de Davi. Viajou para o sul, para a região de Shewa, onde se deparou com o rio Tekezé.

Ali encontrou uma área desabitada com uma "bela caverna" no início de um vale. Construiu um muro de pedra e viveu nesse local isolado para "encarar apenas os fatos essenciais da vida", como Henry David Thoreau descreveria uma vida também solitária, dois séculos mais tarde, em "Walden" (1854).

Por dois anos, até a morte do rei, em setembro de 1632, Yacob permaneceu na caverna como ermitão, saindo apenas para buscar alimentos no mercado mais próximo. Na caverna, ele alinhavou sua nova filosofia racionalista.

Ele acreditava na primazia da razão e afirmava que todos os seres humanos, homens e mulheres, são criados iguais. Yacob argumentou contra a escravidão, criticou todas as religiões e doutrinas reconhecidas e combinou essas opiniões com sua crença pessoal em um criador divino, asseverando que a existência de uma ordem no mundo faz dessa a opção mais racional.

Em suma: muitos dos ideais mais elevados do Iluminismo foram concebidos e resumidos por um homem que trabalhou sozinho em uma caverna etíope de 1630 a 1632.

LIVROS

A filosofia de Yacob, baseada na razão, é apresentada em sua obra principal, "Hatäta" (investigação). O livro foi escrito em 1667 por insistência de seu discípulo, Walda Heywat, que escreveu ele próprio uma "Hatäta" de orientação mais prática.

Hoje, 350 anos mais tarde, é difícil encontrar um exemplar do trabalho de Yacob. A única tradução ao inglês foi feita em 1976 pelo professor universitário e padre canadense Claude Sumner. Ele a publicou como parte de uma obra em cinco volumes sobre a filosofia etíope, que foi lançada pela nada comercial editora Commercial Printing Press, de Adis Abeba.

O livro foi traduzido ao alemão e, no ano passado, ao norueguês, mas ainda é basicamente impossível ter acesso a uma versão em inglês.

A filosofia não era novidade na Etiópia antes de Yacob. Por volta de 1510, "The Book of the Wise Philosophers" (o livro dos filósofos sábios) foi traduzido e adaptado ao etíope pelo egípcio Abba Mikael. Trata-se de uma coletânea de ditados de filósofos gregos pré-socráticos, Platão e Aristóteles por meio dos diálogos neoplatônicos, e também foi influenciado pela filosofia arábica e as discussões etíopes.

Em sua "Hatäta", Yacob critica seus contemporâneos por não pensarem de modo independente e aceitarem as palavras de astrólogos e videntes só porque seus predecessores o faziam. Em contraste, ele recomenda uma investigação baseada na razão e na racionalidade científica, considerando que todo ser humano nasce dotado de inteligência e possui igual valor.

Longe dele, mas enfrentando questões semelhantes, estava o francês Descartes (1596-1650). Uma diferença filosófica importante entre eles é que o católico Descartes criticou explicitamente os infiéis e ateus em sua obra "Meditações Metafísicas" (1641).

Essa perspectiva encontra eco na "Carta sobre a Tolerância" (1689), de Locke, para quem os ateus não devem ser tolerados.

As "Meditações" de Descartes foram dedicadas "ao reitor e aos doutores da sagrada Faculdade de Teologia em Paris", e sua premissa era "aceitar por meio da fé o fato de que a alma humana não morre com o corpo e de que Deus existe".

Yacob, pelo contrário, propõe um método muito mais agnóstico, secular e inquisitivo —o que também reflete uma abertura ao pensamento ateu. O quarto capítulo da "Hatäta" começa com uma pergunta radical: "Tudo que está escrito nas Sagradas Escrituras é verdade?" Ele prossegue pontuando que todas as diferentes religiões alegam que sua fé é a verdadeira:

"De fato, cada uma delas diz: 'Minha fé é a certa, e aqueles que creem em outra fé creem na falsidade e são inimigos de Deus'. (...) Assim como minha fé me parece verdadeira, outro considera verdadeira sua própria fé; mas a verdade é uma só".

Assim, ele deslancha um discurso iluminista sobre a subjetividade da religião, mas continua a crer em algum tipo de criador universal. Sua discussão sobre a existência de Deus é mais aberta que a de Descartes e talvez mais acessível aos leitores de hoje, como quando incorpora perspectivas existencialistas:

"Quem foi que me deu um ouvido com o qual ouvir, quem me criou como ser reacional e como cheguei a este mundo? De onde venho? Tivesse eu vivido antes do criador do mundo, teria conhecido o início de minha vida e da consciência de mim mesmo. Quem me criou?".

IDEIAS AVANÇADAS

No capítulo cinco, Yacob aplica a investigação racional a leis religiosas diferentes. Critica igualmente o cristianismo, o islã, o judaísmo e as religiões indianas.

Ele aponta, por exemplo, que o criador, em sua sabedoria, fez o sangue fluir mensalmente do útero das mulheres, para que elas possam gestar filhos. Assim, conclui que a lei de Moisés, segundo a qual as mulheres são impuras quando menstruam, contraria a natureza e o criador, já que "constitui um obstáculo ao casamento e a toda a vida da mulher, prejudica a lei da ajuda mútua, interdita a criação dos filhos e destrói o amor".

Desse modo, inclui em seu argumento filosófico a perspectiva da solidariedade, da mulher e do afeto. E ele próprio viveu segundo esses ideais.

Depois de sair da caverna, pediu em casamento uma moça pobre chamada Hirut, criada de uma família rica. O patrão dela dizia que uma empregada não estava em pé de igualdade com um homem erudito, mas a visão de Yacob prevaleceu. Consumada a união, ele declarou que ela não deveria mais ser serva, mas seu par, porque "marido e mulher estão em pé de igualdade no casamento".

Contrastando com essas posições, Kant (1724-1804) escreveu um século mais tarde em "Observações sobre o Sentimento do Belo e do Sublime" (1764): "Uma mulher pouco se constrange com o fato de não possuir determinados entendimentos".

E, nos ensaios de ética do alemão, lemos que "o desejo de um homem por uma mulher não se dirige a ela como ser humano, pelo contrário, a humanidade da mulher não lhe interessa; o único objeto de seu desejo é o sexo dela".

Yacob enxergava a mulher sob ótica completamente diferente: como par intelectual do filósofo.

Ele também foi mais iluminista que seus pares do Iluminismo no tocante à escravidão. No capítulo cinco, Yacob combate a ideia de que "possamos sair e comprar um homem como se fosse um animal". Assim, ele propõe um argumento universal contra a discriminação:

"Todos os homens são iguais na presença de Deus; e todos são inteligentes, pois são suas criaturas; ele não destinou um povo à vida, outro à morte, um à misericórdia e outro ao julgamento. Nossa razão nos ensina que esse tipo de discriminação não pode existir".

As palavras "todos os homens são iguais" foram escritas décadas antes de Locke (1632-1704), o pai do liberalismo, ter empunhado sua pena.


E a teoria do contrato social de Locke não se aplicava a todos na prática: ele foi secretário durante a redação das "Constituições Fundamentais da Carolina" (1669), que concederam aos homens brancos poder absoluto sobre seus escravos africanos. O próprio inglês investiu no comércio negreiro transatlântico.

Comparada à de seus pares filosóficos, portanto, a filosofia de Yacob frequentemente parece o epítome dos ideais que em geral atribuímos ao Iluminismo.

ANTON AMO

Alguns meses depois de ler a obra de Yacob, enfim tive acesso a outro livro raro: uma tradução dos escritos reunidos do filósofo Anton Amo (c. 1703-55), que nasceu e morreu em Gana.

Amo estudou e lecionou por duas décadas nas maiores universidades da Alemanha (como Halle e Jena), escrevendo em latim. Hoje, segundo o World Library Catalogue, só um punhado de exemplares de seu "Antonius Guilielmus Amo Afer of Axim in Ghana" está disponível em bibliotecas mundo afora.

O ganês nasceu um século após Yacob. Consta que ele foi sequestrado do povo akan e da cidade litorânea de Axim quando era pequeno, possivelmente para ser vendido como escravo, sendo levado a Amsterdã, para a corte do duque Anton Ulrich de Braunschweig-Wolfenbüttel —visitada com frequência pelo polímata G. W. Leibniz (1646-1716).

Batizado em 1707, Amo recebeu educação de alto nível, aprendendo hebraico, grego, latim, francês e alemão —e provavelmente sabia algo de sua língua materna, o nzema.

Tornou-se figura respeitada nos círculos acadêmicos. No livro de Carl Günther Ludovici sobre o iluminista Christian Wolff (1679-1754) —seguidor de Leibniz e fundador de várias disciplinas acadêmicas na Alemanha—, Amo é descrito como um dos wolffianos mais proeminentes.

No prefácio a "Sobre a Impassividade da Mente Humana" (1734), de Amo, o reitor da Universidade de Wittenberg, Johannes Gottfried Kraus, saúda o vasto conhecimento do autor, situa sua contribuição ao iluminismo alemão em um contexto histórico e sublinha o legado africano da Renascença europeia:

"Quando os mouros vindos da África atravessaram a Espanha, trouxeram com eles o conhecimento dos pensadores da Antiguidade e deram muita assistência ao desenvolvimento das letras que pouco a pouco emergiam das trevas".

O fato de essas palavras terem saído do coração da Alemanha na primavera de 1733 ajuda a lembrar que Amo não foi o único africano a alcançar o sucesso na Europa do século 18.

Na mesma época, Abram Petrovich Gannibal (1696-1781), também sequestrado e levado da África subsaariana, tornava-se general do czar Pedro, o Grande, da Rússia. O bisneto de Gannibal se tornaria o poeta nacional da Rússia, Alexander Pushkin. E o escritor francês Alexandre Dumas (1802-70) foi neto de uma africana escravizada e filho de um general aristocrata negro nascido no Haiti.

Amo tampouco foi o único a levar diversidade e cosmopolitismo a Halle nas décadas de 1720 e 1730. Vários alunos judeus de grande talento estudaram na universidade. O professor árabe Salomon Negri, de Damasco, e o indiano Soltan Gün Achmet, de Ahmedabad, também passaram por lá.

CONTRA A ESCRAVIDÃO

Em sua tese, Amo escreveu explicitamente que havia outras teologias além da cristã, incluindo entre elas a dos turcos e a dos "pagãos".

Ele discutiu essas questões na dissertação "Os Direitos dos Mouros na Europa", em 1729. O trabalho não pode ser encontrado hoje, mas, no jornal semanal de Halle de novembro de 1729, há um artigo curto sobre o debate público de Amo. Segundo esse texto, o ganês apresentou argumentos contra a escravidão, aludindo ao direito romano, à tradição e à razão.

Será que Amo promoveu a primeira disputa legal da Europa contra a escravidão? Podemos pelo menos enxergar um argumento iluminista em favor do sufrágio universal, como o que Yacob propusera cem anos antes. Mas essas visões não discriminatórias parecem ter passado despercebidas dos pensadores principais do iluminismo no século 18.

David Hume (1711-76), por exemplo, escreveu: "Tendo a suspeitar que os negros, e todas as outras espécies de homem em geral (pois existem quatro ou cinco tipos diferentes), sejam naturalmente inferiores aos brancos". E acrescentou: "Nunca houve nação civilizada de qualquer outra compleição senão a branca, nem indivíduo eminente em ação ou especulação".

Kant levou adiante o argumento de Hume e enfatizou que a diferença fundamental entre negros e brancos "parece ser tão grande em capacidade mental quanto na cor", antes de concluir, no texto do curso de geografia física: "A humanidade alcançou sua maior perfeição na raça dos brancos".

Na França, o mais célebre pensador iluminista, Voltaire (1694-1778), não só descreveu os judeus em termos antissemitas, como quando escreveu que "todos eles nascem com fanatismo desvairado em seus corações"; em seu ensaio sobre a história universal (1756), ele afirmou que, se a inteligência dos africanos "não é de outra espécie que a nossa, é muito inferior".

Como Locke, Voltaire investiu dinheiro no comércio de escravos.

CORPO E MENTE

A filosofia de Amo é mais teórica que a de Yacob, mas as duas compartilham uma visão iluminista da razão, tratando todos os humanos como iguais.

Seu trabalho é profundamente engajado com as questões da época, como se vê em seu livro mais conhecido, "Sobre a Impassividade da Mente Humana", construído com um método de dedução lógica utilizando argumentos rígidos, aparentemente seguindo a linha de sua dissertação jurídica anterior. Aqui ele trata do dualismo cartesiano, a ideia de que existe uma diferença absoluta de substância entre a mente e o corpo.

Em alguns momentos Amo parece se opor a Descartes, como observa o filósofo contemporâneo Kwasi Wiredu. Ele argumenta que Amo se opôs ao dualismo cartesiano entre mente e corpo, favorecendo, em vez disso, a metafísica dos akan e o idioma nzema de sua primeira infância, segundo os quais sentimos a dor com nossa carne ("honem"), e não com a mente ("adwene").

Ao mesmo tempo, Amo diz que vai tanto defender quanto atacar a visão de Descartes de que a alma (a mente) é capaz de agir e sofrer junto com o corpo. Ele escreve: "Em resposta a essas palavras, pedimos cautela e discordamos: admitimos que a mente atua junto com o corpo graças à mediação de uma união natural. Mas negamos que ela sofra junto com o corpo".

Amo argumenta que as afirmações de Descartes sobre essas questões contrariam a visão do próprio filósofo francês. Ele conclui sua tese dizendo que devemos evitar confundir as coisas que fazem parte do corpo e da mente. Pois aquilo que opera na mente deve ser atribuído apenas à mente.

Talvez a verdade seja o que o filósofo Justin E. H. Smith, da Universidade de Paris, aponta em "Nature, Human Nature and Human Difference" (natureza, natureza humana e diferença humana, 2015): "Longe de rejeitar o dualismo cartesiano, pelo contrário, Amo propõe uma versão radicalizada dele".

Mas será possível que tanto Wiredu quanto Smith tenham razão? Por exemplo, será que a filosofia akan tradicional e a língua nzema continham uma distinção cartesiana entre corpo e mente mais precisa que a de Descartes, um modo de pensar que Amo então levou para a filosofia europeia?

Talvez seja cedo demais para sabermos, já que uma edição crítica das obras de Amo ainda aguarda ser publicada, possivelmente pela Oxford University Press.

COISA EM SI

No trabalho mais profundo de Amo, "Treatise on the Art of Philosophising Soberly and Accurately" (tratado sobre a arte de filosofar com sobriedade e precisão, 1738), ele parece antecipar Kant. O livro trata das intenções de nossa mente e das ações humanas como sendo naturais, racionais ou de acordo com uma norma.

No primeiro capítulo, escrevendo em latim, Amo argumenta que "tudo é passível de ser conhecido como objeto em si mesmo, ou como uma sensação, ou como uma operação da mente".

Ele desenvolve em seguida, dizendo que "a cognição ocorre com a coisa em si" e afirmando: "O aprendizado real é a cognição das coisas em si. E assim tem sua base na certeza da coisa conhecida".

Seu texto original diz "omne cognoscibile aut res ipsa", usando a noção latina "res ipsa" como "coisa em si".

Hoje Kant é conhecido por seu conceito da "coisa em si" ("das Ding an sich") em "Crítica da Razão Pura" (1787) —e seu argumento de que não podemos conhecer a coisa além de nossa representação mental dela.

Mas é fato sabido que essa não foi a primeira utilização do termo na filosofia iluminista. Como diz o dicionário Merriam-Webster no verbete "coisa em si": "Primeira utilização conhecida: 1739". Mesmo assim, isso foi dois anos depois de Amo ter entregue seu trabalho principal em Wittenberg, em 1737.

À luz dos exemplos desses dois filósofos iluministas, Zera Yacob e Anton Amo, talvez seja preciso repensarmos a Idade da Razão nas disciplinas da filosofia e da história das ideias.

Na disciplina da história, novos estudos comprovaram que a revolução mais bem-sucedida a ter nascido das ideias de liberdade, igualdade e fraternidade se deu no Haiti, não na França. A Revolução Haitiana (1791-1804) e as ideias de Toussaint L'Ouverture (1743""1803) abriram o caminho para a independência do país, sua nova Constituição e a abolição da escravidão.

Em "Les Vengeurs du Nouveau Monde" (os vingadores do novo mundo, 2004), Laurent Dubois conclui que os acontecimentos no Haiti foram "a expressão mais concreta da ideia de que os direitos proclamados na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, eram de fato universais".

Nessa linha, podemos indagar se Yacob e Amo algum dia serão elevados à posição que merecem entre os filósofos da Era das Luzes.

*

Este texto foi publicado originalmente no site Aeon.

DAG HERBJORNSRUD, 46, é historiador de ideias e fundador do SGOKI (Centro de História Global e Comparativa de Ideias), em Oslo.

CLARA ALLAIN é tradutora.

FABIO ZIMBRES, 57, é quadrinista, designer e artista visual. 


sábado, 23 de dezembro de 2017

A Revolução Russa e o revisionismo histórico

"Para a ideologia hegemônica de hoje, a dominação colonial e o banho de sangue da guerra mundial são sinônimos de normalidade, ou mesmo de sanidade psicológica, enquanto que a Revolução de Outubro – oposta a tudo isso – representa uma epidemia, a disseminação da loucura."

Este livro é uma vigorosa resposta àqueles que pretendem denegrir a história da luta emancipatória.Neste denso e original balanço das revoltas modernas, Domenico Losurdo identifica e recrimina uma tendência reacionária que tem crescido entre historiadores contemporâneos: o revisionismo. Articulando com maestria categorias filosóficas e políticas como guerra civil internacional, revolução, totalitarismo e genocídio, o autor demonstra como as reais motivações dos revisionistas pouco têm a ver com o esforço para um melhor entendimento do passado; em vez disso, baseiam-se nas circunstâncias do presente e nas necessidades ideológicas das classes políticas. O revisionismo histórico quer erradicar a tradição revolucionária e reabilitar a tradição colonial. Losurdo contrapõe oferecendo ao leitor uma nova perspectiva do século XX.



Por Domenico Losurdo.

“Duas epidemias assolaram o mundo em 1918. Uma foi a influenza espanhola […] A outra epidemia foi o bolchevismo, que por determinado período pareceu quase tão contagioso quanto e no final das contas se provou tão letal quanto a influenza.”
(Niall Ferguson, The War of the World, pp. 115-5).

Assim nos fala o mais bem sucedido historiador ocidental de nosso tempo, para quem a Revolução de Outubro evidentemente não passa de um capítulo na história de loucura (e de loucura criminosa, diga-se). E no entanto essa mesma revolução pôs fim ao monstruoso “genocídio” [Völkermord] tão memoravelmente denunciado por Rosa Luxemburgo, essa mesma revolução forçou o fim do que Bukharin chamou de uma “sombria fábrica de cadáveres”.


A Primeira Guerra Mundial foi uma carnificina total em que até mesmo pessoas completamente alheias ao conflito foram obrigadas a participar. Conforme observou o respeitado historiador britânico A. J. P. Taylor, “cerca de 50 milhões de africanos e 150 milhões de indianos foram envolvidos, sem consulta, em uma guerra a respeito da qual não compreendiam nada”. Foram simplesmente recolhidos pelo governo londrino e deportados a milhares de quilômetros de distância, para serem conduzidos a uma “sombria fábrica de cadáveres” que agora operava a pleno vapor na Europa. Foram levados lá como membros de uma “raça inferior”, que uma “raça superior” podia em boa consciência sacrificar como bucha de canhão (ver Guerra e revolução: o mundo um século após Outubro de 1917, pp.176-7, 309 e 168).

E, no entanto para Ferguson, e para a ideologia hegemônica hoje, não há dúvida: a dominação colonial e o banho de sangue da guerra mundial são sinônimos de normalidade, ou mesmo de sanidade psicológica, enquanto que a Revolução de Outubro – oposta a tudo isso – representa uma epidemia, a disseminação da loucura.

Quando afinal teria atacado primeiro essa doença revolucionária? De acordo com outro dos mais aclamados historiadores da corte por parte do ocidente liberal e capitalista, Richard Pipes, o Outubro Bolchevique não passou da conclusão do ruinoso ciclo histórico que iniciou na Rússia com a Revolução de 1905. Outros expoentes do revisionismo histórico vão ainda mais longe, afirmando que, no ocidente, o vírus revolucionário e essa epidemia toda começou a encolerizar-se já em meados do século XIX, com a publicação do Manifesto Comunista, ou ainda antes, com a disseminação da filosofia das luzes que deu origem revolução jacobina (prólogo à Revolução Bolchevique).

A essa altura, tudo fica evidente: tanto para os revisionistas históricos quanto para a ideologia dominante, equaciona-se saúde espiritual e mental com estabilidade do ancien régime. No conjunto, esse último foi caracterizado por uma hierarquia social e racial, caracterizado nas colônias pela expropriação, deportação e dizimação dos nativos. Esse é o mundo que a Revolução de Outubro teve o grande mérito de mergulhar em crise. Se o apelo de Lênin aos “escravos coloniais” para que rompessem seus grilhões inspirou e estimulou a revolução anticolonial mundial, outros slogans ainda estão para serem realizados. Talvez eles devessem ser repensados hoje, tendo em vista realizar sua plena efetividade.


Para download: "DEMOCRACIA Y SOCIALISMO", E. P. THOMPSON

E. P. Thompson, Democracia y socialismo [recurso electrónico] / edición crítica Alejandro Estrella; prólogo Bryan D. Palmer ; traducción América Bustamante Piedragil . – México : UAM, Unidad Cuajimalpa, 2017.

1. Thompson, E. P. (Edward Palmer), 1924-1993 – Pensamiento político – Crítica e interpretación – Colecciones de escritos. 2. Materialismo histórico – Historia – Siglo XX. 3. Socialismo y guerra - Historia – Siglo XX. 4. Derechas e izquierdas (Política) – Historia – Siglo XX.

LINK PARA DOWNLOAD:


Esta selección de textos tiene para el lector en lengua hispana el carácter de primicia. Los artículos de E. P. Thompson incluidos en este libro fueron editados originalmente por la New Reasoner, la University and Left Review y la New Left Review entre 1957 y 1960. Flanqueados por dos de sus grandes obras historiográficas (William Morris. De romántico a revolucionario y La formación de la clase obrera en Inglaterra), nunca fueron traducidos y responden a una temática eminentemente política. En el marco de la gran crisis del comunismo internacional de 1956 y tras la ruptura con el Partido Comunista, Thompson se embarca en el movimiento de la Nueva Izquierda; un lugar de confluencia (pacifistas, socialistas, jóvenes, sindicalistas, etc.) que pretendía articularse como un espacio político en la izquierda británica alternativo a los aparatos del Partido Laborista y del Partido Comunista. La crítica al estalinismo y la defensa de un humanismo socialista, la relación entre los intelectuales y la militancia política, el papel de la acción humana y su intervención en el curso de la historia como un acto de creación, el sentido de la Nueva Izquierda, la naturaleza de los procesos revolucionarios o la actualidad de la política de clase constituyen algunos de los grandes temas que Thompson aborda a lo largo de estos artículos. El lector cuenta con un extenso aparato crítico que permite situar los textos en sus contextos y conocer algunos de los conceptos fundamentales que articulan la propuesta política e historiográfica de E. P. Thompson.

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sexta-feira, 22 de dezembro de 2017

Do fundo de um baú francês, a campanha internacional pró-libertação de Prestes.

O cineasta brasileiro Claudio Kahns recebeu de um acervo francês fragmentos da campanha internacional pela libertação de Luís Carlos Prestes, preso por Getúlio Vargas após o fracasso da revolta comunista de 1935 no Brasil.



Por Cláudio Kahns (*)


Há alguns anos, pesquisando materiais sobre o ator José Lewgoy para um documentário, acabei localizando as representantes de um acervo de filmes em Paris, onde constava “SOS Noronha”, um thriller rodado em 1957 na Córsega, cujo enredo se passava supostamente em Fernando de Noronha, onde Lewgoy atuou ao lado do grande ator Jean Marais.

Uma destas senhoras me contatou recentemente para ver se eu poderia ajudá-las na restauração de um outro filme, Santo Módico, rodado em Salvador em 1961, numa onda de filmes musicais feitos pós Orfeu Negro, que teve enorme sucesso internacional e, dentre outros prêmios, ganhou a Palma de Ouro em Cannes e o Oscar de melhor filme estrangeiro.

Santo Módico, dentre outras curiosidades, tem uma trilha especialmente composta por Antonio Carlos Jobim, Baden Powell, Vinicius de Morais e Carlos Bonfá! O filme nunca foi lançado, afora algumas poucas exibições, pois o produtor ficou sem grana no final, coisa nada incomum no mundo do cinema.

Mas toda esta história para dizer que a mesma senhora me enviou há alguns dias alguns documentos que fazem parte de seu acervo e que acredito, tem algum interesse histórico; trata-se da campanha internacional feita em 1936/37 em favor de Luís Carlos Prestes, um dos 16 mil prisioneiros da ditadura Getúlio Vargas.

Dentre outros, existe um folheto onde a mãe de Prestes apela por sua liberdade, até cartas do Comitê Francês “Carlos Prestes”, integrado por grandes personalidades como o escritor e futuro Ministro André Malraux e o professor Lucien Febvre, endereçadas ao Ministro de Relações Exteriores, Yvon Delbos, pedindo sua interferência junto a Embaixada Brasileira em Paris, pela libertação do Cavaleiro da Esperança.

Pode ser material de interesse para historiadores e pesquisadores, pois a perseguição política infelizmente não é algo novo em nossa história e tende a se repetir, como sabemos.

(*) Claudio Kahns é cineasta e jornalista.



Cuba, territorio libre de analfabetismo

El 22 de diciembre de 1961, Cuba es declarada territorio libre de analfabetismo.

Pronuncia discurso en la concentración en la Plaza de la Revolución “José Martí”, para proclamar a Cuba Territorio Libre de Analfabetismo, 2l 22 d diciembre de 196. Foto: Periódico Granma /Sitio Fidel Soldado de las Ideas


Tras el triunfo de 1959, uno de los grandes males que arrastraba la sociedad cubana, a causa de los gobiernos anteriores, era el alto índice de analfabetismo.

El tercer año de la revolución, fue decisivo en ese sentido. Iniciada el 1 de enero de 1961, la Campaña de Alfabetización fue una de las batallas más importantes ganadas por el gobierno y el pueblo cubano en general.

La Campaña en Cuba evidenció que la alfabetización de un pueblo, tanto como el hecho educativo mismo, es un acontecimiento cuyo éxito depende de la participación masiva y unánime de todas las organizaciones existentes y de todos los sectores de la población, sin descuidar su aspecto técnico organizativo.

Así, el 22 de diciembre de ese año, Cuba es declarada territorio libre de analfabetismo.

Fidel, mayor artífice de la hazaña, expresó en la concentración celebrada en la Plaza de la Revolución José Martí aquel día: “Vamos a proceder a izar la bandera con la que el pueblo de Cuba proclama ante el mundo que Cuba es ya Territorio Libre de Analfabetismo.

“Cuando se dijo que Cuba iba a liquidar el analfabetismo en el sólo término de un año, aquello parecía una afirmación temeraria, aquello parecía un imposible… hubiera sido una tarea imposible para cualquier pueblo del mundo, salvo que esa tarea se la planteara un pueblo en revolución. Sólo un pueblo en Revolución hubiese sido capaz de desplegar el esfuerzo y la energía necesarias para llevar adelante tan gigante propósito.”

“(…) la victoria contra el analfabetismo en nuestro país se ha logrado mediante una gran batalla, con todas las reglas de una gran batalla. (…)”

Luego, en 1981, en el acto de graduación de 10 658 egresados del Destacamento Pedagógico Universitario “Manuel Ascunce Domenech”, en el polígono de Ciudad Libertad, afirmó:

“La lucha por la calidad se gana fundamentalmente en la escuela, en la capacidad del director y del maestro por movilizar a la familia y a la comunidad en el cumplimiento de los objetivos de la educación; en ganar el apoyo de los consejos de escuela y de las organizaciones juveniles y de masas; en lograr que alumnos y trabajadores conozcan sus deberes, en exigir el cumplimiento de esos deberes y en tener moral suficiente para exigir. La calidad se debe expresar en el resultado de la enseñanza y de la educación”.

Saluda a los alfabetizadores en la concentración en la Plaza de la Revolución “José Martí”, para proclamar a Cuba Territorio Libre de Analfabetismo, lo acompaña una joven alfabetizadora, el 22 de diciembre de 1961. Foto: Sitio web Radio Rebelde /Sitio Fidel Soldado de las Ideas


Sobre los retos de la educación cubana reconoció, en discurso pronunciado en el acto central con motivo del inicio del curso escolar 1989-90, efectuado en la escuela Solidaridad con Namibia, municipio La Lisa, 4 de septiembre de 1989: “¿Qué nos queda por delante? Nos queda la calidad, la cuestión de la calidad. ¿Qué es calidad? Calidad es introducir la enseñanza de computación en toda la enseñanza universitaria, lo primero que hicimos en los últimos años. Calidad es introducir la computación en todos los preuniversitarios del país, en todos los tecnológicos, en todas las escuelas de maestros, en todas las escuelas secundarias del país; eso es calidad, y esa es la calidad que hemos estado introduciendo en los últimos años”.

A treinta años del fin del analfabetismo en Cuba, en el acto por el XXXV Aniversario de la Campaña de Alfabetización, efectuado en el Teatro “Lázaro Peña”, 22 de diciembre de 1996, reconoció Fidel:

“Un día habrá que levantarles un monumento a los educadores, como habrá que levantarle un monumento gigantesco a todo el pueblo, aunque no se pueda hacer el monumento que merecen de piedra, o de mármol, o de acero. Hay algo más duro que todo eso y más duradero, porque un monumento material puede ser destruido, lo que no podrá ser destruido jamás es la página de la historia que ustedes han escrito”.

Para conocer más sobre el ideario del líder de la Revolución Cubana, visite el sitio Fidel Soldado de las Ideas

FONTE: Cubadebate


Saluda a jóvenes alfabetizadores en la concentración en la Plaza de la Revolución “José Martí”, para proclamar a Cuba Territorio Libre de Analfabetismo, el 22 de diciembre de 1961. Foto: Periódico Granma /Sitio Fidel Soldado de las Ideas

Para download: "Teoria Histórico-Cultural: Questões Fundamentais para a Educação Escolar"

Teoria histórico-cultural: questões fundamentais para a educação escolar / organizadores: Maria Valéria Barbosa ; Stela Miller ; Suely Amaral Mello. – Marília : Oficina Universitária ; São Paulo : Cultura Acadêmica, 2016. 


CLIQUE AQUI PARA BAIXAR O PDF DO LIVRO:



A obra aqui apresentada é síntese de um movimento de relexão e de divulgação do conhecimento produzido, sob a égide dos fundamentos teórico-metodológicos da Teoria Histórico-Cultural, por pesquisadores nacionais e internacionais participantes do 2º Congresso Internacional sobre a Teoria Histórico-Cultural e 13ª Jornada do Núcleo de Ensino de Marília.

Verifica-se, nos textos publicados nesta obra, o compromisso assumido pelos autores em explicitar a essência do conhecimento em todas as suas dimensões, ontológica, gnosiológica, lógica e epistemológica, que tem como gênese os princípios do materialismo dialético e histórico.

Entende-se que estes princípios são o diferencial da Teoria Histórico-Cultural, pois permitem explicar a realidade concreta e as possibilidades existentes para a sua transformação por meio da atividade humana organizada visando a um fim, o desenvolvimento humano nos aspectos social e individual. Nesse sentido, o pensamento de Marx e Engels é considerado atual e necessário para se entender e explicar as condições e circunstâncias para a superação, ainda que de forma parcial, dos processos históricos de alienação presentes na sociedade de classes.

Enquanto categoria do método materialista histórico e dialético que fundamenta a Teoria Histórico-Cultural, o trabalho, entendido como atividade adequada a um fim, é o que nos faz humanos, uma vez que pelas necessidades identiicadas, o homem define objetivos, planeja ações para realizá-los e transforma a natureza, ao mesmo tempo em que se autotransforma, humanizando-se. Pelo trabalho são deinidas as condições da vida social. Nesse movimento, que é de ordem histórica, as leis biológicas que regiam a vida antes do processo de hominização, são substituídas por leis sócio-históricas. Tal fato define as novas condições materiais, e os meios de subsistência são transformados em novas condições de existência do homem, enquanto ser social.


Obrigados a pagar pelo que plantam

O desafio dos quilombolas do Maranhão que resistem à perversa prática do foro

Comunidades quilombolas no MA se recusam a pagar taxa de uso a fazendeiros

Por Solange Azevedo, Repórter Brasil, em Serrano do Maranhão

Capatazes chegam com chicotes em punho para cobrar o foro: uma espécie de imposto pago pelos quilombolas aos fazendeiros para poder viver nas terras e plantar. Sem muita conversa, recolhem a maior e melhor parte da produção da lavoura, fruto de meses de trabalho. Mandioca, milho, arroz, maxixe, abóbora. 

Quando julgam que a colheita não foi suficientemente farta, exigem dinheiro e confiscam tudo o que encontram. Carregam até pratos, panelas e cavalos. Botam fogo em casa de farinha para retaliar. Ameaçam de expulsão e morte quem se atreve a resistir. Deixam famílias inteiras para trás passando fome. 

Embora pareçam saídos de um livro de história do século 19, os relatos são de fatos recentes e acontecem ainda hoje em quilombos do Maranhão --comunidades formadas pelos descendentes de quem viveu a escravidão naquela época. 

Em comunidades da Baixada Maranhense, é comum fazendeiros que se dizem donos das terras, muitas vezes sem ter nenhum documento de comprovação, obrigarem os moradores a repartir o que cultivam. É um sistema que se repete há décadas e, durante longo tempo, foi seguido sem questionamentos pelos quilombolas. Mas, à medida que eles foram tomando consciência de seus direitos, passaram a resistir e os conflitos se acirraram.

"Houve um fenômeno esquisito no Estado, as fazendas eram vendidas com as pessoas dentro, como se fossem coisas", pontua Sandra Araújo dos Santos, advogada da CPT (Comissão Pastoral da Terra). "Os negros não entendiam dessas questões de documentação, então iam sendo submetidos ao que os novos donos queriam, como ao pagamento de taxas absurdas."

Para muitas famílias, como as 150 que vivem no território onde está localizado o Quilombo do Charco, em São Vicente Ferrer, abrir mão do que produzem pode significar não ter o que colocar na própria mesa.

Mas a violência produzida pelo foro vai além da fome. O quilombola Flaviano Pinto Neto pagou com a vida porque ousou desafiar esse sistema. Foi assassinado com sete tiros na cabeça, em outubro de 2010. De acordo com a polícia, ele tombou a mando do fazendeiro Manoel Gentil.

"Flaviano não aceitou que a exploração continuasse", diz Zilmar Mendes, presidente da Associação Quilombola do Charco. "Foi assassinado porque libertou a nossa comunidade da escravidão." Pelo menos cinco quilombolas foram mortos no Maranhão depois dele, em decorrência de conflitos de terras. O Estado é um dos líderes em disputas fundiárias no país. 

A perversa prática do foro, que persiste em dezenas de quilombos no Maranhão, é uma herança do modo como foi aprovada a Lei Áurea. A escravidão acabou oficialmente em 1888, mas não houve uma política de distribuição de terras. Quem havia sido escravizado ficou vulnerável a novas formas de aprisionamento mesmo dentro das áreas onde se estabeleceu como pessoa livre.

As comunidades maranhenses, assim como de outras unidades da federação, foram constituídas por trabalhadores escravizados que buscavam liberdade ou recém-libertos, que se fixaram em áreas deixadas por fazendeiros falidos pósabolição, em terras sem destinação ou em lotes recebidos como herança. Foram formando família. Mas, sem o amparo do Estado, a exploração continuou.

A comunidade que rompeu com o foro

Foi essa a história do Quilombo Nazaré, em Serrano do Maranhão, onde os moradores conseguiram romper com o sistema do foro poucos anos atrás. "O que a gente não pode fazer é se entregar", salienta a professora Joana Batista Santos, de 60 anos.

Ana, como é conhecida, nasceu e foi criada em Soledade, comunidade a 9 km dali. Ela se mudou para Nazaré em 2000, para dar aula na única escola do povoado, e viu que a situação de exploração não era diferente de outros quilombos do Estado.

Mas, àquela altura, o marido dela, José Romão Reis Reges, hoje com 60 anos, já estava envolvido com o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Cururupu, de onde se tornou presidente. E o fim do foro era uma das bandeiras da entidade. "Para receber, o fazendeiro tinha que mostrar o recibo de propriedade da terra", alega Reges. 

A resistência à taxa imposta por fazendeiros aumentou quando os quilombolas começaram a despertar para os seus direitos. A presença de Clemir Batista e Inaldo Serejo, da CPT, a partir de 2005, foi essencial nesse processo tanto em Nazaré quanto em outras comunidades nas redondezas.

Eles "plantaram uma sementinha", reconhece Gil Quilombola, 37, o filho mais velho de dona Ana e seu Reges, uma das lideranças da região. "Detectaram que Serrano era uma área com muitos conflitos fundiários. Começaram a falar de quilombos, quilombolas, direitos e deveres. A gente se assanhou", brinca Gil.

Nesse momento, surgiu na Baixada o Moquibom (Movimento Quilombola do Maranhão), que passou a fazer reivindicações e se estendeu por todo o Estado. Seus integrantes já chegaram a acampar no Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) e a fazer greve de fome, em busca de visibilidade para sua luta e reconhecimento legal de seus territórios.

Nazaré está encravado a mais de 100 km da capital, São Luís. Uma viagem de cerca de seis horas que envolve travessia de balsa, percurso em estrada de asfalto e de areia fofa. É uma das 11 comunidades quilombolas do território batizado de Mariano dos Campos, área cuja extensão equivale à metade do Plano Piloto de Brasília e que é reivindicada pelos quilombolas em um processo que corre no Incra desde 2011.

A demanda por regularização fundiária é grande na região. Pelos cálculos do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), 94% da população de Serrano é quilombola. É a maior proporção do país.

O empresário Wellington Dias, que já se candidatou a vereador e a prefeito pelo Partido Verde na cidade vizinha, Cururupu, é um dos que afirmam ter comprado propriedades lá. Disse à Repórter Brasil ter adquirido a primeira em 1982 do espólio do médico Cesário Coimbra. "É muito fácil não estudar, não trabalhar, não fazer nada e querer se apropriar de terras alheias", critica.

Contrariando a autoidentificação da comunidade, o reconhecimento da Fundação Cultural Palmares e do próprio governo do Estado de que a área é quilombola -tanto que há políticas públicas específicas para as comunidades--, Dias alega que Nazaré nunca foi um quilombo. "Isso é uma farsa", reclama.

A reação dele mostra a dificuldade da comunidade em fazer valer o artigo 68 da Constituição, que prevê a concessão definitiva de propriedade. Direito que está ameaçado pela ADI (Ação Direta de Inconstitucionalidade) 3239, ajuizada pelo DEM no STF (Supremo Tribunal Federal).

A demora do governo federal na regularização definitiva das terras, a maioria já certificada como quilombola pela Fundação Cultural Palmares, mantém os ânimos exaltados. "Antes negro deitava no chão para fazer ponte pra branco passar por cima. Hoje não deita mais porque negro já é sabido", diz José Mário Silva Pinto, 54.

Ele conta que chegou a encontrar perto de sua casa um fojo, vala profunda coberta por folhas usada por capitães-do-mato como armadilha para capturar pessoas escravizadas que haviam fugido ou mantê-las presas. "No inverno ficava tudo cheio de água. Tem fojo onde jogavam os negros e eles não saíam mais porque tinha ponta de ferro", lembra.

Pinto leva a vida como a maior parte dos habitantes de Nazaré, em casa de taipa, e tira seu sustento da terra e do rio. Seu orgulho de ser quilombola emergiu quando a CPT ajudou o povoado a exorcizar discursos como o de que as religiões de matriz africana são "coisas do demônio" e de que "negro não presta". "Não desprezo a minha comunidade", afirma ele. "Não tenho intenção de sair daqui." 

No quilombo, divindades católicas convivem com orixás, caboclos e encantados. Tambores de mina e crioula ecoam nos festejos do povoado. "O toque do tambor palpita no peito como se fosse o próprio coração, e os quilombolas vão se encorajando pela força de seus ancestrais e da espiritualidade", diz Sandra, da CPT.

A primeira quilombola

Contam os mais antigos que o português Ramiro Pinto chegou à Baixada Maranhense na primeira metade do século 19. Teria seguido a rota de pássaros e aberto uma estrada na mata imaginando que encontraria um rio e que poderia fixar residência nas redondezas.

Nhô Ramiro, como era chamado, conseguiu o que buscava. Colonizou uma boa porção de terras por lá e manteve o costume da época: perpetuou seu sobrenome tanto nos herdeiros de sangue quanto nas pessoas que escravizou --um sinal de que seriam todos de sua propriedade. 

Parte do que se sabe hoje sobre a história da região foi relatada por uma neta de Nhô Ramiro, Galberta, filha de um homem branco e de uma mulher negra escravizada. Ela teria vivido lúcida até os 115 anos. "Minha avó Galberta ainda era criança quando a princesa Isabel gritou a liberdade", lembra Pedrolina Pinto Castelhano, 62, se referindo à Lei Áurea. "A família se espalhou quando acabou a escravidão. Muitos negros já tinham fugido das fazendas naquele tempo, mas ela ficou. Cresceu no Quilombo Nazaré."

Galberta costumava reunir os netos em bancos de madeira ou sentados no chão sobre folhas de piaçaba para contar o que sabia. Formava uma grande roda de crianças. Todas com pratinhos de comida redondos de barro produzidos por ela própria. Falava dos sacrifícios de viver numa sociedade opressora. Repetia que os senhores de escravos das fazendas de lá se saudavam todas as manhãs chacoalhando lenços brancos. "A mata não era alta como agora, era tudo limpinho", recorda Pedrolina. "Os negros sofriam demais. Minha avó não fugiu porque era doente, nasceu corcunda. Fazia tudo o que mandavam."

Muita coisa mudou desde então, em especial quando os quilombolas foram descobrindo seus direitos. Entre a instalação de um poço artesiano e o rompimento com o sistema do foro, um local marcou o processo de transformação da comunidade: a escola, que se tornou o centro de resistência do Quilombo Nazaré.