domingo, 27 de março de 2016

O que é um golpe de estado?

Alvaro Bianchi procura responder a questão do momento: o que é um golpe de estado?



Por Alvaro Bianchi

Discute-se muito a respeito da possibilidade de um golpe de estado no Brasil. Mas a discussão não deveria ignorar a necessidade de uma rigorosa conceitualização, nem a vasta bibliografia existente sobre o tema. Já no século XVII Gabriel Naudè definia o coup d’état como “aquelas ações arrojadas e extraordinárias que os príncipes são forçados a tomar em situações difíceis e desesperadas, contrariamente à lei comum, sem manter qualquer forma de ordem ou justiça, colocando de lado o interesse particular em benefício do bem público” (NAUDÈ, 1679, p. 110).

Em Naudè o coup d’état se confunde com a própria raison d’état. Em sua exposição considerava, por exemplo, que a perseguição aos huguenotes na noite de São Bartolomeu decretada pelo rei Carlos IX havia sido um golpe de estado, assim como o assassinato do duque de Guise por Henrique III e a proibição pelo imperador Tibério de que sua cunhada se casasse novamente e tivesse filhos que disputassem o trono. O livro de Naudè já oferece uma pista para uma definição de golpe de estado: um conceito eficaz de golpe de estado deve levar em conta seu sujeito e os excepcionais que este utiliza para conquistar o poder.

A inspiração de Naudè era fortemente maquiaveliana. Sua obra não tinha por objeto apenas a conquista do poder. Ela trata, também, das condições necessárias para sua manutenção. Assim como o secretario florentino, Naudè ainda não fazia aquela distinção propriamente moderna entre o príncipe e o Estado. Dai que o coup d’état apareça seja sempre retratado como uma conspiração palaciana e seu protagonista seja sempre o soberano. Trata-se de uma era de transição. Escrevendo contemporaneamente a Naudè, Thomas Hobbes insistiria nessa identificação entre o soberano e a sociedade política, mas em autores imediatamente posteriores, como John Locke o governante e o Estado já aparecem como duas entidades separadas.

A ideia de coup d’état foi usada com parcimônia pela literatura do séculos seguintes. A generalização na publicística da época do uso da ideia de coup d’état ocorreu na França apenas durante o século XIX. A historiografia desse século tendeu a interpretar a derrubada do Diretório e a instituição do Consulado por Napoleão Bonaparte, no 18 brumário do ano VIII como um golpe de estado. Depois, em alguns panfletos como naqueles de Jules Failly (1830), Jean-Baptiste Mesnard e Santo-Domingo (1830) os eventos que culminaram com a ascensão de Louis Philippe ao poder, em 1830, foram pensados como um coup d’état. Mas foi depois do golpe de Luís Bonaparte em 1851 que a literatura referente ao golpe de estado se difundiu. Karl Marx, com seu 18 brumário de Luís Bonaparte é o mais conhecido, mas a literatura existente sobre o golpe promovido pelo sobrinho de Napoleão é muito mais vasta. O próprio Marx lembra a respeito dois livros notáveis, um de Pierre-Joseph Proudhon (1852) e outro de Victor Hugo (1852).

Uma mudança conceitual importante ocorreu no século XIX. O uso da ideia de coup d’état na literatura política a partir do século XIX não tem por sujeito exclusivamente o soberano e os golpes retratados não tem seu lugar apenas nos palácios imperiais. A elevação de Napoleão à condição de primeiro-cônsul, por exemplo, foi tramada no interior do Conseil des Anciens e do Conseil des Cinq-Cents e foi decidida com a intervenção do exército. E seu sobrinho não teria conseguido realizar seus propósitos sem a mobilização do exército comandado pelo general Jacques Leroy de Saint Arnaud. Marx descreve os episódios que levaram a entronização de Luis Bonaparte como uma série de golpes e contragolpes. A lei que a Assembleia preparava definindo as responsabilidades do presidente da República foi descrita, por exemplo, como um golpe (MARX, 2011 [1852], p. 51). Também são descritos como “coup d’état da burguesia” a lei eleitoral de 31 de março de 1850, a qual restringia a participação popular, e a lei de imprensa, a qual baniu proscreveu os jornais revolucionários (MARX, 2011 [1852], p. 86).

A literatura do século XIX sobre o golpe de estado distingue-se do modelo apresentado por Naudè. Naquelas obras que tem por objeto o golpe de Luís Bonaparte, evidentemente o sujeito da ação ainda é o soberano. Mas as condições nas quais o golpe se efetivou foram mais complexas do que aquelas existentes nas conspirações palacianas e o número de atores envolvidos era maior. A trama que resulta no coup d’état é, assim, mais intrincada e envolve atores que estão fora do palácio, em especial aqueles que se encontram na Assembleia Nacional e sem os quais o golpe não seria possível.

Militares e burocratas                   

Uma pesquisa com o aplicativo Ngram Viewer do Google Books permite vislumbrar a evolução do uso da expressão coup d‘etat. O aplicativo busca e quantifica palavras ou expressões indicando a fração percentual delas no total do corpus de livros. Não é um mecanismo muito preciso porque o corpus apresenta lacunas. Quando feita a pesquisa em livros em francês, por exemplo, a expressão não aparece nenhuma vez entre 1850 e 1876, quando uma simples busca de livros por título na Biblioteca Nacional Francesa já indica mais de 150 obras com a expressão. Mas quando se faz a busca no corpus em inglês o resultado é muito interessante, como se pode ver no gráfico abaixo:



Como se pode ver no gráfico, a partir da Primeira Guerra Mundial há um uso cada vez mais intenso da expressão coup d’etat na bibliografia em inglês. Com a exceção de um declínio durante a Segunda Guerra Mundial e nos anos imediatamente posteriores o crescimento é contínuo até 1969, seguindo-se por uma acentuado queda nos anos posteriores. Essa queda é simétrica aquela que a expressão dictactorship apresenta nos mesmos anos e coincidiria de certa maneira com aquilo que Samuel Huntington (1991) chamou de terceira onda de democratização, a qual teria ocorrido a partir de 1974.

Além de acompanhar o uso da expressão é importante compreender os sentidos que ela passou a assumir no século XX. Na obra clássica do escritor Curzio Malaparte, Technique du coup d’état (1981 [1931]), também ela inspirada em Machiavelli, o golpe de estado é o próprio ato de conquista do poder político. Malaparte generaliza o conceito, concebendo o golpe de estado como um momento da revolução e da contrarrevolução. O livro provocou a ira de Leon Trotsky o qual era amplamente citado como um dos artífices do golpe de estado que teria levado os bolcheviques ao poder.

Mas a literatura que se debruçou sobre os golpes de estado da segunda metade do século XX achou por bem distinguir o coup d’état da revolução. É o caso, por exemplo do livro de Edward Luttwak, Coup d’etat: a practical handbook (1969). Luttwak é um conservador, especialista em assuntos militares e já trabalhou como consultor do Departamento de Estado nos Estados Unidos. Seu livro sobre o golpe de estado foi interpretado por muitos como uma manual prático para a realização de um golpe. Mas como ele mesmo alerta ironicamente se fosse isso o livro não serviria de muita coisa. No único caso em que foi comprovado seu uso o golpe fracassou e seu protagonista foi preso e executado (LUTTWAK, 1991 [1969], p. 19).

Logo no início de seu livro, Luttwak define o golpe de estado como um fenômeno moderno, decorrente da “ascensão do Estado moderno com sua burocracia profissional e suas forças armadas” (LUTTWAK, 1991 [1969], p. 23). O golpe se distinguiria da revolução palaciana, a qual estaria relacionada, exclusivamente, à pessoa do governante. Segundo Luttwak, “o golpe é algo muito mais democrático. Pode ser conduzido ‘de fora’ e opera naquela área fora do governo mas dentro do Estado, que é formada pelo funcionalismo público permanente, pelas foras armadas e a polícia. O objetivo é desligar os funcionários permanentes do Estado da liderança política” (LUTTWAK, 1991 [1969], p. 23).

A diferença entre o golpe a revolução estaria no sujeito desses processos. Enquanto o coup d’état tem por sujeito a burocracia estatal, a revolução tem como protagonista as “massas populares”. Destaque-se que Luttwak considera o golpe de estado não é uma técnica apropriada para uma orientação política particular, ou seja, o golpe é uma tática “politicamente neutra” de conquista do poder político e são bastante frequentes os casos de golpes de estado levados a cabo por setores progressistas ou nacionalistas do aparelho estatal.

No século XX a forma predominante foi a do “pronunciamento”, o golpe de estado promovido pelos militares. Em suas origens no século XIC a forma do pronunciamento estava frequentemente associada a movimentos liberais e o propósito do golpe era expressar a “vontade geral” contra o governo. Mas com o passar do tempo esta forma adquiriu contornos mais conservadores, e o golpe passou a ser visto como a manifestação da “vontade real”, de uma estrutura espiritual duradoura que nem sempre coincidiria com a opinião pública e que teria como guardiã uma instituição igualmente duradoura, o exército (ver, p. ex. LUTTWAK, 1991 [1969], p. 28).

Ainda assim, Luttwak assinala as diversas ocasiões entre 1945 e 1978 nas quais o golpe teria tido como protagonistas frações políticas ou militares “esquerdistas”. É o caso dos golpes fracassados de 1959 no Iraque, 1960 na Guatemala, 1966 no Egito, 1966 no Sudão, 1968 no Iemen, 1971 no Madagascar e 1972 na República Popular do Congo. Haveria ainda o golpe bem sucedido de uma “facção esquerdista” do exército Sírio em 1966 e o golpe promovido pelos comunistas na Tchecoslováquia em 1948 (cf. LUTTWAK, 1991 [1969], Tabela II). Embora o conceito de esquerda que o autor utiliza possa ser questionado esses eventos, nos quais geralmente facções nacionalistas e modernizantes do exército tiveram o protagonismo já são suficientes para questionar a hipótese de que o que define um golpe de estado é seu caráter reacionário.[1]

Repensando o conceito

A maior parte dos golpes de estado inventariados por Luttwak tiveram por protagonistas facções do exército e seu livro considera o golpe predominantemente como uma operação militar tática. O golpe militar é, sem dúvida, a forma predominante durante o século XX. Isso fez com que muitas vezes o copu d’état fosse identificado exclusivamente com sua variante militar. É o que ocorre na definição que David Robertson oferece em The Routdlege Dictionary of Politics: “Coup d’état descreve a derrubada repentina e violenta de um governo, quase invariavelmente por militares ou com a ajuda de militares” (ROBERTSON, 2004, p. 125).

Mas a uma definição tão limitada não permite considerar a hipótese de golpes promovidos por grupos do poder Legislativo ou Judiciário ou por uma combinação de vários grupos e facções. Esse parece ser o caso brasileiro em 1964, quando a mobilização militar encontrou o respaldo no Senado, que “vaga a Presidência da República” e no Supremo Tribunal Federal, que realizou uma sessão na madrugada do dia 3 de abril para empossar Ranieri Mazzili na presidência da República. Recentemente, os golpes que derrubaram Manuel Zelaya em Honduras, no ano de 2009, e Fernando Lugo no Paraguai, em 2012, tiveram por protagonistas facções do poder Legislativo. O conceito precisa, portanto, ser alargado. Aquela ideia inicial de Naudè pode ser retomada com esse propósito, mas como um ponto de partida. O conceito deve deixar claro quem é o protagonista daquilo que se chama coup d’état, os meios que caracterizam a ação e os fins desejados.

O sujeito do golpe de estado moderno é, como Luttwak destacou, uma fração da burocracia estatal. O golpe de estado não é um golpe no Estado ou contra o Estado. Seu protagonista se encontra no interior do próprio Estado, podendo ser, inclusive, o próprio governante. Os meios são excepcionais, ou seja, não são característicos do funcionamento regular das instituições políticas. Tais meios se caracterizam pela excepcionalidade dos procedimentos e dos recursos mobilizados. O fim é a mudança institucional, uma alteração radical na distribuição de poder entre as instituições políticas, podendo ou não haver a troca dos governantes. Sinteticamente, golpe de estado é uma mudança institucional promovida sob a direção de uma fração do aparelho de Estado que utiliza para tal de  medidas e recursos excepcionais que não fazem parte das regras usuais do jogo político.

Também aqui o espírito de Machiavelli se faz presente. Compreender o que é um golpe de estado é o primeiro passo para poder enfrenta-lo. Substituir o conceito por slogans pode ter efeitos positivos para a mobilização das pessoas. Mas não é um recurso que permita compreender a realidade presente. A própria mobilização obtida é, por essa razão, incapaz de uma ação política eficaz. Frequentemente ela aponta para a direção errada. Um componente importante da atual crise da esquerda está em sua recusa a compreender a realidade. Prefere sempre a comodidade das antigas fórmulas. A análise torna-se, assim, serva da política. Mas sem o controle do pessimismo do intelecto, o otimismo da vontade transforma-se em ativismo verbal. E às vésperas de um coup d’état no Brasil, o que não tem faltado é esse inócuo ativismo verbal.

Referências bibliográficas

AUGERAUD, W.  Le coup d’état du 18 brumaire et ses conséquences. Bruxelles: J.-H. Briard. 1853.

FAILLY, Jules. Jugement du coup d’état et de la Révolution de 1830. Paris: Delaunay, 1830.

GABRIEL, Alexandre. Le coup d’Etat de décembre 1851 dans le Var. Draguignan: imp. de Gimbert fils, Giraud ,1878

HUGO, Victor. Napoléon le Petit. Bruxelles: A Mertens, 1852.

HUNTINGTON, Samuel P. The third wave: democratization in the late twentieth century. Norman: University of Oklahoma, 1991.

LUTTWAK, Edward. Golpe de Estado: um manual pratico. Rio de Janeiro, RJ: Paz e Terra, 1991 [1969].

MALAPARTE, Curzio. Técnica do golpe de estado. Lisboa: Europa-América, 1983.

MARX, Karl. O 18 brumário de Luís Bonaparte. Prólogo de Herbert Marcuse. São Paulo, SP: Boitempo, 2011 [1952].

MESNARD, Jean-Baptiste. Le Coup d’état et la Révolution. Paris: de Selligue. 1830

NAUDÉ, Gabriel. Considérations politiques sur les coups d’Estat. Paris: s.e., 1679.

PROUDHON, Pierre-Joseph. La Révolution sociale démontrée par le coup d’état du 2 décembre. 2 ed. Paris: Garnier frères 1852.

ROBERTSON, David. The Routledge Dictionary of Politics. 3 ed. London: Routledge, 2004.

SANTO-DOMINGO, Joseph-Hippolyte de. Les Prêtres instigateurs du coup d’état, ce qu’ils ont fait, ce qu’ils auraient fait, ce qu’ils peuvent faire. Paris: A.-J.,1830.

TÉNOT, Eugène. Paris en décembre 1851: étude historique sur le coup d’état (5e édition). Paris: Le Chevalier, 1868

Nota

[1] Poderíamos acrescentar que, de acordo com o conceito de Luttwak, os levantes militares de 1922 e 1924 e até mesmo o putsch comunista de 1935 no Brasil seriam golpes de estado fracassados promovidos por “facções esquerdistas do exército”, enquanto a chamada Revolução de 1930 seria um golpe bem sucedido promovido pela mesma fração.

FONTE: Blog Junho

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