domingo, 20 de dezembro de 2015

«os professores perderam o controle total sobre o seu processo de trabalho».

Entrevista com a investigadora Kênia Miranda.

1- o que é a escola?

A escola é a instituição que, por excelência, tem a função social de transmitir o conhecimento produzido pela humanidade às novas gerações. Historicamente ela consolidou uma estrutura dual com organizações diferentes para as diferentes classes sociais. Nos termos de Gramsci, poderíamos falar que a educação contemporânea organizou-se em uma escola para formar dirigentes e outra para os dirigidos.

Mas, nem sempre foi assim. O fenômeno educativo já existia nas comunidades primitivas, sem a divisão em classes sociais. Ela era, portanto, de responsabilidade do coletivo, numa experiência essencialmente prática de vivência no grupo, logo, sem a materialização de um espaço escolar formal. É com a mudança no modo de produção e de apropriação do excedente social que a educação passa a ser controlada por uma determinada classe social. Aquela classe que detinha os meios de produção material começou também a exercer o controle sobre os meios de produção espiritual. Na sociedade capitalista, a escola, assim como o Estado, possui evidente caráter de classe e, dada a configuração da luta de classes, apresenta maior ou menor funcionalidade ao capital naquilo que lhe interessa mais diretamente, a preparação de novos trabalhadores. Para tal, o Estado, maior responsável pela educação formal, cumpre papel importante.

Esse permanente movimento do capital em buscar a transformação da educação em mercadoria, formar novos trabalhadores de acordo com as suas necessidades produtivas efêmeras e expropriar o conhecimento daqueles que conduzem o processo educativo, os professores, resulta na explicitação da luta de classes no terreno da formação, em particular da educação formal.

2 – o que deveria ser?

Se a educação formal e o conjunto dos processos de formação humana têm sido, sob o capitalismo, para a maioria esmagadora da classe trabalhadora, espaço de conformação social e de acesso parcial aos conhecimentos – já que os trabalhadores não podem ser totalmente privados do conhecimento, como nos diz Saviani -, sob a crítica negativa da sociedade atual, ela deve ser antagônica a esse modelo.

Ela deve ser pública e unitária, sob o controle dos trabalhadores. Isso que dizer que para pensar e fazer a escola que nos serve, temos que recuperar o que há de melhor na tradição do movimento da classe trabalhadora. A necessidade da luta pela abolição da “escola velha” foi inscrita pelo programa socialista na história por experiências como a Comuna de Paris e a Revolução Russa, assim como em todos os lugares em que uma sociedade autogerida ganhava corpo. A formulação marxiana de Educação Tecnológica ou Politécnica ou, posteriormente, a de Gramsci, de Escola Unitária são as nossas referências de partida.

A formação humana integral de cunho socialista, que Marx e Engels apresentaram como contraproposta à elaborada pelo capital, deveria unificar três tipos de formação, a educação intelectual, a educação corporal e a educação tecnológica, articuladas para oferecer os fundamentos científicos gerais do trabalho, tornando-o princípio educativo e instrumento de análise da realidade.

Ou seja, se a propriedade privada e o trabalho alienado tornaram os homens unilaterais, reduzidos à força de trabalho, a finalidade formativa desta educação é a omnilateralidade, um desenvolvimento completo, multilateral das necessidades e capacidades e humanas, obstaculizadas pelo vil interesse do capital.

Para Marx, esse processo só é possível se a escola for financiada pelo Estado, sem que ele seja o educador do povo. Nós, trabalhadores da educação, estudantes, familiares e trabalhadores em geral, temos que conceber e executar essa escola que perceba, explicite e tensione as contradições entre o desenvolvimento das forças produtivas e as relações sociais de produção e que possibilite aos trabalhadores ferramentas científicas e organizativas que contribuam para dirigir a coletividade.

3- defendes que os professores estão submetidos formalmente e realmente ao capital? Podes explicar isso para leigos?

Como disse, para que o Capital possa avançar em seu projeto de converter a educação em mercadoria e em conformação social, ele necessariamente precisa expropriar o conhecimento daqueles que conduzem o processo educativo. Os professores são os principais alvos, há uma tendência crescente a uma perda progressiva do controle sobre o seu processo de trabalho.

Marx analisou historicamente a perda do controle sobre o processo de trabalho na transição entre o sistema feudal e o capitalista, em que a sociedade passou por dois estágios anteriores à industrialização, propriamente dita, o artesanato e a manufatura. Para ele, na forma especificamente capitalista, há a subsunção real: o trabalhador não possui os meios de produção, não o conhece nem controla o processo de trabalho, tampouco é seu o produto do trabalho.

A partir dessa síntese marxiana comecei a pensar sobre o processo crescente de perda de autonomia do trabalho docente nos dias atuais, concluindo que ele tende a uma subsunção real ao capital, ou seja a uma subordinação ideológica e material ao capital.

O trabalho docente não encontra-se mais na etapa de subsunção formal, uma vez que o professor não é mais um mestre-escola, não é empregador de si mesmo, não possui o controle total de seu processo de trabalho, tampouco os meios e o conjunto dos instrumentos de produção. Restou-lhe o conhecimento parcial de sua área de atuação, alvo de constantes disputas, um conhecimento não patenteado, que está à disposição da sociedade de diversas formas.

Portanto, considero que o trabalho docente encontra-se na fase transitória entre a subsunção formal e a subsunção real dos processos de trabalho, onde a primeira etapa já foi superada e a segunda não se completou. Essa é a tendência que observamos a partir da pesquisa realizada com os sindicatos docentes no Brasil, a de uma subsunção proto-real do trabalho docente ao capital.

O trabalho docente não está subsumido realmente ao capital. A forma da Educação a distância (EAD), expressão mais objetivada da educação, apesar da expansão, não se configurou como expressão hegemônica da educação formal.

Se o grau de subsunção do trabalho docente não chegou a sua forma máxima, a da subsunção real, uma chave explicativa é que os trabalhadores, em particular os da educação, atuaram nesta correlação de forças resistindo às investidas do capital, no que diz respeito aos processos de intensificação da jornada, flexibilização das formas de contratação e inserção de mecanismos meritocráticos e de competitividade, a partir de avaliações externas, ao longo, principalmente, das últimas duas décadas. Mas, certamente, muito avançou a expropriação do conhecimento e do processo decisório dos docentes, acelerando a proletarização docente.

4- que experiências conheces de lutas das escolas?

No Brasil, as lutas sindicais são as mais representativas das lutas por educação, pelo menos desde o final da década de 1970. Antes disso, foram expressivos os movimentos de educação popular, na década de 1960, por alfabetização dos trabalhadores. Naquela conjuntura, tratava-se de uma realidade de cerca de 40% da população analfabeta, em média, segundo os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Tal realidade tornava-se ainda mais grave nas regiões Norte e Nordeste do país. Dessas lutas também derivaram as lutas por educação dos trabalhadores do campo. Desde a década de 1980, movimentos como o dos trabalhadores rurais sem terra têm conduzido lutas por escola e pelo direito de realizar uma educação para e dirigida pelos camponeses.

Do ponto de vista das lutas sindicais dos trabalhadores da educação, as principais bandeiras foram a expansão do ensino e dos respectivos recursos financeiros, a manutenção de seu caráter público e a garantia de condições de trabalho à comunidade escolar. E o principal instrumento, a greve. De um modo geral, essas lutas sindicais não conseguiram a disseminação de suas pautas ao conjunto da classe trabalhadora, embora, em diversos momentos tenham conseguido convergências com as pautas mais gerais.

As políticas neoliberais de educação, mesmo enfrentando grande resistência, resultaram em precárias condições objetivas de trabalho, realidade da maioria absoluta das redes públicas da educação básica e das universidades brasileiras, e abriram espaço para maior controle sobre o que é ensinado, para a diversificação do financiamento da educação pública e para o crescimento do setor privado.

Se as Jornadas de Junho de 2013, que se estenderam por julho e agosto do mesmo ano, colocaram em questão elementos da ordem vigente, demonstrando, nas ruas de várias capitais do país, a insatisfação com a qualidade dos serviços públicos oferecidos pelo Estado, que dizem respeito ao modo de vida população, tais como aqueles relacionados aos transportes, à saúde e à educação, um poderoso movimento surgiu nas últimas semanas, centrado na educação, cujo epicentro são as escolas paulistas.

Cerca de duas centenas de escolas estaduais paulistas estão ocupadas por estudantes que demonstram resistência ímpar à política educacional do governo do estado de São Paulo, de Geraldo Alckmin (PSDB), que anunciou, para 2016, o fechamento de escolas e transferência unilateral de estudantes. O protagonismo dos estudantes secundaristas deve ser destacado, assim como a originalidade dessa forma de luta no país. Se as ocupações de escolas foram vistas em outros contextos na América Latina, como no Chile e na Argentina, no Brasil, é a primeira vez que acontecem como principal ação tática. As escolas são assumidas pelos estudantes que a partir delas, vão às ruas. A participação docente nessa luta ainda parece aquém do que a realidade interpela. É um momento perigoso para o projeto de educação do capital.

5- podes dar exemplos dessas lutas que reconheças e acertaram e que falharam, ou seja, para ti e, que as lutas erram e como é possível acertar?

Não sou espectadora dessas lutas, participo de parte delas, de seus erros e de seus acertos. Os limites das lutas por educação expressam e são expressão dos limites das lutas gerais da classe trabalhadora. Para avançarmos nas propostas pedagógicas é necessário que o resultado da luta de classes esteja mais favorável aos trabalhadores, não foi assim nas experiências revolucionárias? O que Portugal conquistou a partir da Revolução dos Cravos reverberou também sobre a educação, sobre a formação humana. Isso não quer dizer que as lutas por educação sejam inócuas hoje, não são, muito pelo contrário, podem ser um grande ponto de partida. Se elas não se reduzirem à esfera corporativa, serão lutas importantes, formativas. Para acertar, precisamos de maior capacidade de espraiá-las no conjunto da vida social.

 

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