terça-feira, 5 de maio de 2015

Paraná: genealogia de um massacre

Uma tentativa de historicizar o processo de construção do massacre de 29 de abril.

Por Gilberto Calil (texto e fotos)


A violenta repressão policial contra professores, estuantes e servidores públicos do estado do Paraná, no dia 29 de abril de 2015, teve repercussão mundial. O massacre perpetrado por um assustador contingente de policiais militares (1) contra 20 mil manifestantes produziu mais de 200 feridos e cenas de selvageria que correram o mundo. Como chegamos a esta situação? O que estava em jogo? Por que o governo do Paraná decidiu impor uma repressão tão violenta e desproporcional?


O Governo Beto Richa e o estelionato eleitoral


Carlos Alberto Richa (conhecido como Beto Richa) é governador do estado do Paraná desde janeiro de 2011. Filho de um ex-governador e integrante de uma família tradicional de políticos, Richa é filiado ao Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) – partido de centro-direita que conduziu a disseminação de políticas neoliberais no Brasil entre 1995 e 2002 e progressivamente vem se situando mais à direita, chegando a participar recentemente de manifestações junto com organizações de extrema-direita e defensores de um golpe militar.


Em outubro de 2014 Beto Richa lançou-se à reeleição, reunindo em torno de sua candidatura 17 partidos (2). Em sua campanha eleitoral, anunciou que as finanças do estado do Paraná estavam saneadas, prometeu “melhorar a qualidade do ensino” (3), garantiu que “o melhor está por vir” e que “vai ter dinheiro  no caixa, porque nós saneamos as finanças” (4). Com este discurso, venceu a eleição com 55% dos votos válidos. Poucas semanas depois, Richa anunciou que o estado atravessava grave crise financeira e impôs a aprovação de um pacote de aumento das tarifas, reajustando o imposto de circulação de 95 mil produtos e aumentando o imposto sobre licenciamento de veículos em 40% (5).


Ao assumir seu segundo mandato, em 1º/1/2015, Richa atrasou o pagamento de compromissos do estado, demitiu 29 mil professores com contratos temporários sem pagar os valores devidos e deixou de pagar o terço de férias de todo o funcionalismo público estadual (6). No início de fevereiro, encaminhou à Assembleia Legislativa do Estado do Paraná (ALEP) um conjunto de medidas que ficou conhecido como “Pacotão de Maldades”, para revogar direitos estabelecidos na carreira dos servidores públicos e atacar seu fundo previdenciário.


O Pacotão de Maldades e a Batalha de Fevereiro


O “Pacotão de Maldades” tornou-se público no dia 4 de fevereiro. Era constituído de um conjunto de 13 medidas, incluindo-se a redução do número de professores nas escolas , do montante de verbas destinadas à Ciência e Tecnologia, do auxílio transporte e das possibilidades de progressão na carreira dos professores (7). Na versão inicial do pacotão, previa ainda a imposição de uma “autonomia financeira” que debilitaria profundamente as universidades estaduais (8).


A intenção do governo era que fosse aprovado através de um procedimento peculiar, apelidado de “tratoraço”: de acordo com este procedimento, o plenário da ALEP era transformado em “comissão geral” e considerava-se como se ao mesmo tempo estivesse tramitando em todas as comissões e no plenário simultaneamente. Três dias depois, mais de 10 mil professores e funcionários de escolas reunidos em assembleia em um estádio de futebol decidem entrar em greve, sendo seguidos pelos docentes e funcionários das sete universidades estaduais.


O ponto central do Pacotão era a Reforma Previdenciária. Por meio dela, o governo pretendia apropriar-se de R$ 8 bilhões do Fundo Previdenciário constituído com a contribuição previdenciária dos servidores estaduais. Com isto, criou insegurança no funcionalismo público em relação à efetivação futura do direito de receber  suas aposentadorias, e ainda instituiu um limite para seu recebimento, no valor de R$ 4.600,00.


No dia 10 de fevereiro, mais de vinte mil servidores públicos reuniram-se em manifestação de protesto em frente à ALEP, e no final da tarde ocuparam o Plenário, impedindo a votação do Pacotão em rito sumário (9). Três dias depois, com o Plenário ainda ocupado e com a presença de milhares de manifestantes em frente à ALEP, os deputados da bancada governista (ampla maioria do Parlamento) ingressaram na ALEP dentro de um blindado da Polícia de Choque conhecido como “Caveirão”, pretendendo realizar a sessão nas instalações do restaurante da Assembleia (10). O translado dos deputados dentro do “Caveirão” foi objeto de imediata ridicularização e, em um contexto de forte mobilização e revolta popular, os deputados viram-se forçados a aprovar a retirada do projeto. Naquele momento, 90% dos paranaenses apoiavam a greve na educação e 80% manifestavam-se favoráveis à ocupação da ALEP (11).


No dia 9 de março, depois de 29 dias de greve, os professores e funcionários das escolas encerram a greve, obtendo em troca a retirada de parte dos ataques impostos por Richa e a garantia de que a previdência dos servidores não seria atacada. Na mesma semana, o governo comprometeu-se também com os docentes das universidades em greve a revogar o decreto que instituía uma comissão para elaborar o projeto de “autonomia financeira”, e descartava “a hipótese de extinção do fundo previdenciário”, garantindo que “os recursos do fundo previdenciário serão utilizados exclusivamente para o pagamento de aposentadorias e pensões, garantida a sustentabilidade financeira” (12). Com base neste Termo de Acordo, também nas universidades foi suspensa a greve.


A Reforma Previdenciária e a retomada das greves


No entanto, poucos dias depois, o governo Richa descumpriu o acordo e reapresentou a proposta de Reforma Previdenciária, sob novo formato, mas com conteúdo muito semelhante. Ao invés de pretender se apropriar de uma vez dos R$ 8 bilhões, na nova versão da proposta, o governo pretendia apropriar-se dos recursos gradativamente, e através de uma operação engenhosa: a transferência de 33 mil servidores que se aposentaram antes da constituição do Fundo Previdenciário, e que, portanto, deveriam ter suas aposentadorias pagas pelo caixa do governo.


Esta transferência (retroativa a janeiro de 2015) – eufemisticamente chamada de “segregação de massas” – causaria um prejuízo de R$ 143 milhões por mês ao Fundo Previdenciário. Até o final do governo Richa seriam mais de R$ 7 bilhões de prejuízo, inviabilizando a sustentabilidade do Fundo Previdenciário.


Com esta proposta, o governo claramente descumpria o acordo. Em resposta, as greves que tinham sido suspensas foram retomadas a partir do dia 22 de abril. Desta vez, a greve reuniu professores e funcionários das escolas, docentes e técnicos das universidades, agentes penitenciários e servidores da saúde.


A Batalha de Abril


No dia 15 de abril, a ALEP aprovou “Regime de Urgência” para a tramitação da Reforma Previdenciária. Com isto, definia-se um calendário que indicava o período entre 27 e 29 de abril como decisivo para a aprovação do projeto. No sábado, dia 25 de abril, foi montada a maior operação policial da história do Paraná, envolvendo 4.500 policiais militares para o cerco da ALEP, visando não apenas impedir nova ocupação, mas também intimidar e limitar as manifestações populares.



Esta operação envolveu Tropa de Choque, Batalhão de Operações Especiais, cães adestrados (inclusive pitbulls), mas também grandes contingentes policiais militares trazidos de todo o estado – como, por exemplo, o Batalhão de Fronteira, sediado a mais de 700 quilômetros de Curitiba. Por cinco dias, o interior do Paraná permaneceu praticamente desguarnecido de força policial miliar (13)! O caráter intimidatório ficava evidente pela presença ostensiva dos militares já no sábado, quando era sabido que as manifestações se iniciariam apenas na segunda-feira, e também pelas inúmeras barreiras, pela limitação da liberdade de circulação e proibição de acampamento nas proximidades.


No dia 27, reuniram-se aproximadamente 5 mil manifestantes, agrupando delegações em sua maioria provenientes de universidades e escolas do interior do estado. O principal momento de tensão deu-se com a proibição de aproximação do caminhão de som na área da manifestação, até que o impasse fosse resolvido com o ingresso de dois caminhões de pequeno porte. Também foram montadas algumas barracas na Praça Nossa Senhora da Salete, nas proximidades da ALEP, confrontando a arbitrária e ilegal interdição imposta pelo comando militar. Neste dia, deu-se a primeira votação do projeto, aprovado com 31 votos contra 21.


Na madrugada do dia 28, uma violenta operação policial promoveu o rebocamento forçado dos caminhões de som e o deslocamento das grades, reduzindo ainda mais o espaço destinado às manifestações, deixando 8 manifestantes feridos (14). No decorrer do dia, aumentou o contingente de manifestantes, chegando a aproximadamente 8 mil, incluindo-se então maior participação de outras categorias, como agentes penitenciários e servidores da saúde.


Por volta das 11 horas da manhã, deu-se um novo ato repressivo, como um ensaio para o massacre que seria perpetrado no dia seguinte. Quando manifestantes acompanhavam a tentativa de reingresso de um dos caminhões de som, foram surpreendidos por violenta repressão, com lançamento de bombas de gás lacrimogêneo, gás de pimenta, jatos d’água e o disparo de balas de borracha. O caminhão permaneceu mais distante do que se encontrava no dia anterior, tendo sua chave sido confiscada pelo comando da Polícia Militar.


29 de abril: o massacre anunciado se efetiva


Todos estes acontecimentos aumentavam a tensão para o dia 29 de abril, dia decisivo para o qual se previa a votação final do projeto, e também a maior manifestação. Efetivamente, chegou-se a 20 mil manifestantes, com clima de crescente indignação e revolta, o que progressivamente aumentava com a aproximação do início da votação. O presidente da ALEP determinou que a sessão ocorresse a portas fechadas, e uma liminar que possibilitava a presença de 400 pessoas no interior da ALEP foi revogada no final da manhã.


Por volta das 14h30min, enquanto um helicóptero dava voos rasantes, levantando várias barracas, a movimentação da polícia de choque anunciava a disposição de produzir o massacre. Às 14h50, quando manifestantes tentavam empurrar uma das grades que bloqueava sua aproximação em relação à ALEP, iniciou-se uma extraordinária operação repressiva, que durou mais de 2 horas com disparos ininterruptos de balas de borracha, bombas de gás lacrimogêneo, gás de pimenta, jatos d’água, bombas de efeito moral e utilização de cães. Em poucos minutos, os manifestantes já tinham recuado ao menos 50 metros.


Entre a linha de frente da manifestação e os policiais, inúmeros feridos permaneciam caídos no asfalto, sendo impedido seu atendimento. Atiradores postados no alto dos prédios disparavam bombas de gás por toda extensão da Praça Nossa Senhora da Salete, e os disparos frontais de bala de borracha impediam o resgate dos que haviam tombado e multiplicavam o número de feridos. Um deputado estadual foi atacado por um cão pastor alemão, e na sequência um cinegrafista foi alvo de um cão pitbull, e por muito pouco este ataque não atingiu uma região vital (15). A intensidade dos disparos e bombardeios começou a diminuir apenas em torno das 17h. Enquanto isto, dentro da ALEP, a bancada governista recusou-se a interromper a votação e aprovou o projeto enquanto prosseguia o massacre, o que foi simbolizado na frase de seu presidente Ademar Traiano: “A bomba não é aqui dentro. Então vamos votar” (16). Mais uma vez, o projeto foi aprovado com 31 votos favoráveis.


Não houve “confronto” como afirmaram as manchetes de diversos veículos de comunicação. O que ocorreu no dia 29 de abril foi um massacre minuciosamente planejado, que envolveu extraordinário contingente policial e a utilização de enorme quantidade de bombas de gás lacrimogêneo, gás de pimenta, de efeito moral e balas de borracha. O governo anunciou que vinte policiais ficaram feridos, mas desconhece-se a comprovação de um único policial ferido, tendo se tornado motivo de piada as postagens de alguns policiais pintados com tinta cor de rosa como se fosse sangue (17).



Da parte dos manifestantes, mais de 200 feridos, alguns em estado grave, grande parte deles atingida por balas de borracha. A enorme repercussão nacional e internacional do massacre, o descrédito das tentativas do governo Richa de atribuir o confronto aos “black blocs” (18), a reafirmação da greve por parte de diversas categorias e a solidariedade de centenas de movimentos e organizações para com os manifestantes massacrados deixam a esperança de que este crime não ficará impune.



Uma última observação: a perpetuação deste massacre parece evidenciar que a imposição de contrarreformas neoliberais já não pode se dar através da manipulação e da produção de consenso: não é mais possível neutralizar as crescentes resistências populares sem recorrer à repressão em larga escala, típica de uma democracia de baixa intensidade.



Notas:


1)  policiamento responsável pela Segurança Pública no Brasil é subordinado aos governos estaduais e organizado em bases militares.







8) Em virtude de uma negociação com os reitores das sete universidades estaduais, esta medida foi excluída do pacotão, mas em troca o governo pretendia criar uma comissão com a participação dos reitores para elaborar projeto específico de “autonomia financeira”.




12) Informativo 17/2015, disponível em http://adunioeste.net.br/informativos.php?pg=2#page

13) O efetivo policial militar do Paraná é de aproximadamente 15.000 soldados. Portanto, estavam diretamente envolvidos na operação aproximadamente um terço do efetivo total. Cf.http://www.gazetadopovo.com.br/vida-e-cidadania/parana-tem-um-pm-a-cada-669-pessoas-ax8as3agul4vxb4feq59n5hla








Gilberto Calil é professor associado da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste).

Este artigo foi originalmente publicado em língua inglesa no sítio Brasil Wire.





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