domingo, 19 de abril de 2015

A força da capoeira

Marginalizada no passado, mistura de dança e luta afro-brasileira é reconhecida como Patrimônio Imaterial da Humanidade pela Unesco



Por Leandro Almeida*

O registro da capoeira como Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade, anunciado em novembro de 2014 pela Unesco, é mais um passo no reconhecimento dessa cultura de matriz afro-brasileira que mistura jogo, dança, luta, música e canto nas suas animadas rodas. Em 2008, o Instituto do Patrimônio Histórico Artístico Nacional (Iphan) já havia considerado a roda de capoeira e os saberes dos mestres como patrimônio imaterial do Brasil. Por que essa prática de origem escrava, marginalizada pelas elites e perseguida pela polícia até a metade do século XX tornou-se valorizada?

Na primeira metade do século XIX, o termo capoeira carregava três significados diferentes: terreno com mato ralo, cesto grande para transporte de aves e dança/luta praticada em ruas, praças e fontes majoritariamente por escravos oriundos da África Central (atuais Congo e Angola), que tinham autonomia para trabalhar mediante pagamento ao seu senhor. Tal associação capoeira-escravo era tão marcante para a estamental sociedade brasileira do período que, em 1829, um estudante de São Paulo utilizou-a para desqualificar seu desafeto. Em um jornal, citou a “estranheza” do diretor pelo hábito de seu professor de francês “jogar capoeira no Largo do Chafariz, o lugar mais público e frequentado desta cidade, servindo de espetáculo aos negros, que quando o veem dar bem uma cabeçada, o aplaudem com bastantes assobios, palmas, gargalhadas”.

A despeito do aspecto lúdico, os capoeiras também eram temidos por outros escravos, homens livres pobres e, principalmente, pela população branca (inclusive a polícia) que receava uma rebelião escrava, como a ocorrida no Haiti, em 1791, e em Salvador, em 1835. Era comum brancos reclamarem nos jornais das desordens públicas, ferimentos e mortes causados pelas brigas a murros, pontapés, facas e navalhas. Não por acaso, as mais recorrentes referências à capoeira, no Rio de Janeiro e Salvador do século XIX, constam na documentação policial, evidenciando o tratamento repressor dado pelas autoridades aos que a praticavam.

A repressão continuou após a interrupção do tráfico em 1850, quando os grupos de capoeiras (maltas), que dividiam e disputavam entre si o controle das freguesias do Rio de Janeiro, passaram a ser integrados por escravos nascidos no Brasil, homens livres, libertos, negros, brancos, imigrantes portugueses, sertanejos e, ocasionalmente, até membros da elite do Império. Apesar de acusados de vadios, os capoeiras eram em geral trabalhadores de rua, domésticos, estivadores, jornaleiros e artesãos.

A repressão não os impedia de combater pelas elites do Império em ocasiões específicas. Durante a Guerra do Paraguai (1864-1870), capoeiras voluntários ou forçados notabilizaram-se em combate e foram cooptados. Apesar dos embates com a polícia, alguns eram protegidos por fazerem capangagem política para os partidos da época, principalmente o Conservador, coagindo os eleitores a votar nos seus candidatos.

A ligação com as forças políticas da Monarquia pesou sobre os republicanos, combatidos pela Guarda Negra, formada em 1888 e fiel à princesa Isabel. A resposta veio após a mudança do regime: em 1890, o chefe de polícia Sampaio Ferraz deu fim às maltas no Rio de Janeiro, prendeu e enviou vários capoeiras para Fernando de Noronha. Ao mesmo tempo, incorporou-se ao Código Penal o famoso artigo 402, que condena à prisão de dois a seis meses o ato de “fazer nas ruas e praças públicas exercícios de agilidade e destreza corporal, conhecidos pela denominação capoeiragem”.

A despeito da criminalização, foi na Primeira República que apareceram os primeiros textos valorizando a capoeira, escritos sobretudo por intelectuais que a praticavam. Apesar de considerá-la tradição popular de rua, procuraram ressaltar o aspecto de luta e ginástica inventada no Brasil, associando as discussões sobre o caráter brasileiro ao moderno ideal de culto ao corpo, valorizando esportes, danças e lutas nos centros urbanos. Fez parte do coro o oficial da Marinha Aníbal Burlamaqui, responsável por sistematizar os movimentos na sua Ginástica Nacional (capoeiragem) Metodizada e Regrada) (1928), e o escritor Coelho Neto, defensor da superioridade da capoeira perante as lutas estrangeiras que propôs, sem sucesso, seu ensino como ginástica e luta em colégios, quartéis e navios em 1922.

Foi na década de 1930, porém, que a capoeira se associou à nacionalidade. A valorização da identidade nacional disseminou-se pela intelectualidade e foi encampada pelo Estado getulista, que a visibilizou nos meios de comunicação de massa e nas escolas. Diferente da década de 1920, quando os modernistas associaram os indígenas à brasilidade, nos anos 1930 tais símbolos foram buscados nas manifestações negras outrora perseguidas, como samba e, em menor grau, o candomblé e a capoeira, chamando a atenção de etnógrafos e literatos baianos ligados à esquerda política como Edson Carneiro e Jorge Amado.

Ao mesmo tempo, a difusão da capoeira ocorreu a partir das reformulações operadas em Salvador por mestres negros como Manuel dos Reis Machado (1899-1974), o mestre Bimba, e Vicente Joaquim Ferreira Pastinha (1889-1981), o mestre Pastinha.

Baseado na capoeira das ruas e em antigas práticas negras como o batuque, às quais incorporou golpes de outras lutas, Mestre Bimba delimitou os aspectos lúdicos e enfatizou o aspecto marcial e esportivo na sua Capoeira Regional Baiana (1928). Após levá-la para os ringues em desafios contra lutadores de outras artes marciais, o que deu prestígio social à capoeira, foi o primeiro a registrar uma academia em 1937 – um marco na descriminalização. O prestígio de Bimba cresceu e, em 1953, chegou a fazer uma apresentação em Salvador para o presidente Getúlio Vargas.


Também em 1937, capoeiristas da tradicional vertente angola foram convidados para participar do 2º Congresso Afro-Brasileiro, em Salvador, porque seus organizadores, entre os quais Edson Carneiro, a consideraram mais autêntica que a regional. Mestre Pastinha integrou-se a esse grupo no início dos anos 1940 e articulou-o para formar o Centro Esportivo de Capoeira Angola, principal referência nessa modalidade. Diferentemente de Bimba, Pastinha enfatizou o caráter genuíno e africano da capoeira angola ao colocar no mesmo patamar o esporte, a luta, o lúdico e a dimensão cultural. Inspirado no batuque e no candomblé, formatou a prática, os golpes do jogo, os cantos e toques rítmicos do berimbau e demais instrumentos da orquestra.

A trajetória e atuação de Pastinha e Bimba são emblemáticas das transformações operadas na capoeira no século XX. Aprenderam-na na adolescência com mestres de origem africana e praticavam-na em locais públicos como o cais do porto, nas folgas e intervalos dos empregos informais. Conhecendo a marginalização e a repressão policial que pesavam sobre a capoeira de rua soteropolitana no início do século XX, buscaram dissociá-la dos “malandros” ou “valentões”, reforçando sua ligação com os trabalhadores e estudantes, além de enfatizar a ética e no companheirismo nos grupos e rodas.

Navegando por ventos favoráveis a partir de uma concepção esportiva, também facilitaram a aprendizagem da capoeira: levaram-na para as academias e introduziram os uniformes, níveis, regras, hierarquias e sistematizaram os movimentos. Pessoalmente ou por meio das gerações de mestres que formaram, Bimba e Pastinha contribuíram para a expansão da capoeira pelos principais centros urbanos do País e assistiram ao princípio de sua difusão pelo mundo.

Apesar de prestigiados, os mestres morreram pobres: Bimba em situação precária ao se mudar para Goiânia, sem o reconhecimento esperado. Pastinha, cego, em Salvador, só não ficou na miséria porque foi ajudado pelos amigos. É justamente aí que a inclusão da capoeira como Patrimônio Imaterial da Humanidade se torna importante. Como expressa a representante da Unesco no Brasil, ao dar-lhe visibilidade o registro estimula a adoção de políticas públicas de salvaguarda e sustentabilidade pelos governos e sociedade civil. Dois projetos de lei em tramitação no Congresso procuram suprir essa lacuna: o PLC 31/2009 dispõe sobre a profissão de capoeira e o PLS 17/2014 reconhece seu caráter educacional e formativo, possibilitando parcerias com as escolas.

Das ruas para as academias, com a agressividade regrada e malandragem controlada, a capoeira perdeu seu caráter explosivo de marginalidade e subversão, ainda presente nas letras e canções que louvam a valentia e irreverência de figuras como Besouro de Santo Amaro. Foi o preço pago pela difusão social, que possibilitou não somente sua sobrevivência como a sua integração no circuito esportivo, ainda em curso com a proposta de transformá-la em esporte olímpico em 2016, e cultural, a partir do qual, com a chancela do Estado Nacional, tornou-se patrimônio.
 


* Leandro Almeida é professor da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB)


FONTE: Carta Fundamental, publicado na edição 65, de março de 2015. 


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