sábado, 28 de março de 2015

A obra tardia de Lukács

Por Ester Vaisman

Versão parcial do artigo ¨A obra tardia de Lukács e os revezes de seu itinerário intelectual¨ retirado da revista Trans/Form/Ação n:2

A incursão lukácsiana no debate da ontologia não é de modo algum fruto de inclinações particulares ou pessoais, mas surge do reconhecimento de que uma série de questões teóricas que deveriam ser tratadas a partir de uma nova perspectiva. As adversidades de seu tempo impunham - assim julgava o pensador húngaro - a enorme tarefa de retornar à obra de Marx, no intuito de reformular cabalmente as perspectivas teóricas vigentes, de buscar respostas aos descaminhos provocados pela vulgata stalinista que dominou quase toda a tentativa de compreensão teórica dos fenômenos mais importantes do século XX, além das graves distorções que provocara na recepção da obra de Marx.

Por isso mesmo, a última grande obra filosófica de György Lukács, Para uma Ontologia do Ser Social, constitui no interior da história do marxismo um caso à parte, uma vez que destoa do núcleo comum sobre o qual a obra de Marx foi compreendida ao longo de todo o século passado. Esta obra tem por mérito ter sido a primeira a destacar o caráter ontológico do pensamento de Marx, como já indicamos linhas acima.

O retorno sugerido possui uma peculiaridade frente a todo o edifício teórico que se ergueu sobre a base das proposituras marxianas: é uma afirmação enfática de que "ninguém se ocupou tanto quanto Marx da ontologia do ser social", como já sublinhamos anteriormente. Parte da denúncia de que o caráter ontológico do pensamento marxiano ficou obscurecido pela rigidez dogmática em que o marxismo se viu imerso e que rechaçava toda e qualquer discussão acerca da ontologia, qualificando-a de idealista e ou simplesmente metafísica. Na verdade, como o próprio Lukács sugere, esta rigidez nada mais é do que uma vertente específica das reflexões lógico-epistemológicas que passaram a dominar todo o cenário da filosofia desde o séc. XVII,5 que combatem vigorosamente "toda tentativa de basear sobre o ser o pensamento filosófico em torno do mundo", afirmando "como não científica toda pergunta em relação ao ser" (LUKÁCS, 1984, p.7; 1990, t.I, p.3). Não importa o quão antagônicas possam ser em relação a seus princípios filosóficos, ambas são perspectivas enrijecidas e reduzidas pelas mesmas amarras, uma vez que se fundam no interior das discussões lógico-gnosiológicas e, precisamente por isso, ambas estão incapacitadas de perceber que o cerne estruturador do pensamento marxiano são lineamentos ontológicos acerca do ser social.

Todo o vigor dos escritos ontológicos de Lukács possui duas direções básicas: volta-se contra as leituras mecanicistas provenientes principalmente do stalinismo e do marxismo vulgar ao mesmo tempo em que procura combater a crítica dos adversários de Marx, demonstrando como a incompreensão - e mesmo a recusa - de toda e qualquer ontologia encontra-se circunscrita em necessidades prementes da própria configuração da sociedade capitalista.

O combate sugerido por Lukács ao predomínio das reflexões lógico-epistemológicas tem, portanto, a perspectiva que concilia a posição teórica com a necessidade prática. Contra o predomínio manipulatório a que se viu reduzida a ciência no mundo do capital, a ontologia recoloca o problema filosófico essencial do ser e do destino do homem e sua auto-constituição contraditória.

A percepção de uma ontologia em Marx fornece a ele os elementos passíveis de estabelecer de uma vez por todas a ruptura com a gnosiologia. As reflexões de Lukács partem da crítica fundamental que postula que, em Marx, "o tipo e o sentido das abstrações, dos experimentos ideais, são determinados não a partir de pontos de vista gnosiológicos ou metodológicos (e tanto menos lógicos), mas a partir da própria coisa, isto é, da essência ontológica da matéria tratada" (idem, p.596; idem, p.302).

Revela-se nessas palavras o reconhecimento de uma fecunda inflexão do pensamento de Marx em relação a tudo o que foi produzido pela filosofia até então: "o objeto da ontologia marxista, diferentemente da ontologia clássica e subseqüente, é o que existe realmente: a tarefa é a de investigar o ente com a preocupação de compreender o seu ser e encontrar os diversos graus e as diversas conexões em seu interior". Instaura-se a partir desta determinação uma inflexão com os padrões científicos predominantes desde do século XVII. A novidade do pensamento de Marx deve ser entendida sob as bases de:

uma estrutura de caráter completamente novo: uma cientificidade que no processo de generalização, nunca abandona este nível (existência em-si), e que não obstante, em cada singular adequação aos fatos, em cada reprodução ideal de um nexo concreto, examina continuamente a totalidade do ser social e deste modo sopesa continuamente a realidade e o significado de cada fenômeno singular; uma consideração ontológico-filosófica da realidade existente em si que não vaga por sobre os fenômenos hipostasiando as abstrações, mas ao contrário, se põe, criticamente e autocriticamente no mais elevado nível de consciência, só para tomar cada existente na plena forma de ser que lhe é própria, que é específica propriamente deste. Nós cremos que Marx criou assim uma nova forma tanto de cientificidade geral quanto de ontologia, que é destinada no futuro a superar a constituição profundamente problemática, não obstante toda a riqueza dos fatos descobertos, da cientificidade moderna (idem, p.572; idem, p.275).
Esta nova caracterização da cientificidade é definida de um modo simples, porém pleno de conseqüências: as "categorias são formas e determinações da existência". Afirmar isto significa dizer, por um lado, que em tal propositura as categorias e conexões próprias ao ser assumem para o pensamento caráter de metro crítico no processo de construção das abstrações.

E arrematando de forma conclusiva, Lukács diferencia a "velha filosofia" da filosofia de Marx:

o marxismo distingue-se em termos extremamente nítidos das concepções do mundo precedentes: no marxismo o ser categorial da coisa constitui todo o ser da coisa, enquanto nas velhas filosofias o ser categorial era a categoria fundamental no interior da qual se desenvolviam as categorias da realidade. Não é que a história se desenvolva no interior do sistema das categorias, mas ao contrário, a história é a transformação do sistema das categorias. As categorias são, em suma, formas do ser (LUKÁCS, 1986, p.85).
O ser não é uma categoria abstrata, na medida em que é compreendido como totalidade concreta dialeticamente articulada em totalidades parciais. Esta estrutura constitutiva do ser, a que Lukács designa como um "complexo de complexos" – tomando de empréstimo a terminologia de Nicolai Hartmann – apresenta-se sempre por meio de uma intrincada interação dos elementos no interior de cada complexo. O complexo no interior desta perspectiva é compreendido e determinado como um conjunto articulado de categorias que se determinam reciprocamente, e estruturado de forma decisiva por uma categoria que atua como momento preponderante em seu interior. Desse modo a "universal processualidade do ser deriva não somente da complicada interação dos 'elementos' (complexos) no interior de cada complexo e dos complexos entre si, mas da presença cada vez de um übergreifendes Moment que fornece a direção objetiva do processo, o qual se configura por isso como um processo histórico" (SCARPONI, 1976, p.XIII).

Este enfrentamento – teórico e prático – forma a base do argumento que adverte para a necessidade de retorno a Marx, sem as peias erguidas pelo marxismo em geral. Trata-se de varrer das páginas da obra marxiana, uma discussão totalmente estranha à sua letra: afirmações que acusam a existência em Marx de um determinismo unívoco, proveniente da esfera da economia, que absolutiza a potência do fator econômico legando ao segundo plano a eficácia dos outros complexos da vida social. Ao contrário de um determinismo unívoco da esfera econômica sobre as outras instâncias da sociabilidade, como acusa grande parte de seus adversários, o cerne estruturador do pensamento econômico de Marx se funda na concepção da determinação recíproca das categorias que compõem o complexo do ser social. Nas palavras do próprio autor:

Este peculiar, paradoxal, raramente compreendido, método dialético, repousa na já acenada convicção de Marx, segundo a qual, no ser social o econômico e o extra-econômico continuamente se convertem um no outro, estando em uma insuprimível interação recíproca, da qual, como mostramos, não deriva nem um desenvolvimento histórico extraordinário privado de leis, nem uma dominação mecânica 'imposta por lei' do econômico abstrato e puro (LUKÁCS, 1984, p.585; 1990, t.I, p.290-1).
São, portanto, momentos que se apresentam permanentemente em um estado de determinação reflexiva. É a interação e inter-relação destes momentos que constitui a estrutura sobre a qual se move e dinamiza o processo de socialização do homem. As categorias da produção e reprodução da vida – esfera econômica – desenvolvem a função motor central desta dinâmica, todavia, só podem se desenvolver sob a forma de um momento ontologicamente primário de uma interação entre os complexos que vêm a existir na dialética objetiva entre acaso e necessidade. A base econômica permanece sempre como o momento preponderante, no entanto, isso não elimina a relativa autonomia das superestruturas, que se expressa de maneira definitiva na dialética de mútua reciprocidade determinativa existente entre estas e a esfera da economia. Portanto, as esferas superestruturais da sociedade não são simples epifenômenos da estrutura econômica. Longe de constituírem um reflexo passivo, estas estruturas podem agir (ou retroagir) sobre a base material em maior ou menor grau, sempre, entretanto, no interior das "condições, possibilidades ou impedimentos" que esta lhe determina.

O que caracteriza e determina a especificidade da atividade humana é o fato de ser uma "atividade posta", ou seja, é a configuração objetiva de um fim previamente ideado - pôr teleológico. O trabalho passa a ser entendido assim como a unidade entre o pôr efetivo de uma dada objetividade e a atividade ideal prévia diretamente regida e mediada por uma finalidade específica. Neste sentido, Lukács define o resultado final do trabalho como uma "causalidade posta", o que significa dizer que se trata de uma causalidade que foi posta em movimento pela mediação de um fim humanamente configurado. Na atividade laborativa estas duas categorias, embora antagônicas e heterogêneas, formam uma unidade no interior do complexo. Portanto, de um lado, a causalidade posta, e de outro o pôr teleológico, constituem, sob a forma da determinação reflexiva, o fundamento ontológico da dinamicidade de complexos próprios apenas ao homem, na medida em que a teleologia é uma categoria existente somente no âmbito do ser social. Deste modo, definindo o pôr teleológico como célula geratriz da vida social, e vislumbrando no seu desenvolvimento e complexificação o conteúdo dinâmico da totalidade social, Lukács impossibilita a confusão entre as diretrizes e princípios que regem a vida da natureza e a vida da sociedade: "a primeira é dominada pela causalidade espontânea, não teleológica por definição, enquanto a segunda é constituída por obra dos atos finalistas dos indivíduos" (TERTULIAN, 1990, p.XX).

Após estas determinações sobre os fundamentos genéticos da ontologia do ser social, Lukács demonstra como estes mesmos atos teleológicos podem aparecer de forma diferenciada quando se considera o objeto sobre o qual incidem suas ações. Entre esses atos, a diferença fundamental se refere fundamentalmente ao objeto sobre o qual exercem sua ação. Os atos teleológicos primários incidem de forma imediata sobre um dado objeto ou elemento natural, enquanto os atos teleológicos secundários têm como finalidade a consciência de outros homens, ou seja, "não são mais intervenções imediatas sobre objetos da natureza, mas intencionam provocar estas intervenções por parte de outras pessoas" (LUKÁCS, 1984, p.46; 1990, t.II, p.56). Desse modo, percebe-se também em que esfera da vida social, sempre atada à prática, se encontra a esfera da educação e suas conseqüências.

É a análise destas formas distintas dos atos teleológicos que nos auxilia a compreender o processo de desenvolvimento das fases superiores a partir da forma originária do trabalho. A dinâmica inerente às interações categoriais do trabalho não apenas instaura a origem humana como também determina a dinâmica das formas superiores da prática social. Nas formas superiores de sociedade elas ocupam um lugar de destaque, assumindo o papel preponderante na dinâmica deste processo. Os assim denominados atos teleológicos secundários tornam-se mais "desmaterializados" uma vez que se desvinculam da relação direta com o momento material da prática social. São estes atos, também designados por atos socio-teleológicos, que mais tarde dão origem a dimensões importantes da prática social, tais como a ética, a ideologia, a educação e inclusive - e esta é uma questão crucial para Lukács - a partir dela podemos vislumbrar a gênese das ações políticas.

Tanto a questão do trabalho quanto a complexificação da dinâmica da sociedade humana com o advento das formas superiores da vida social como a formação humana, entendidos no sentido mais lato do termo, são tratadas prevalentemente a partir da determinação recíproca e da superação da heterogeneidade entre teleologia e causalidade. Essas categorias formam, no interior das elaborações lukácsianas a base analítica de toda e qualquer ação do ser social. Nesse mesmo diapasão, identificamos outra tese lukácsiana: todo o processo social é posto em movimento por meio das ações teleológicas individuais, mas que em sua totalidade estes atos não possuem uma finalidade determinada, resulta daí todo um movimento que opera por meio de nexos causais espontâneos. Afirmação que nos leva, portanto - e aqui convém ressaltar esta determinação com toda a clareza -, a entender que no plano da totalidade do ser social está presente toda uma malha de nexos que atuam sob a forma de uma causalidade social. Fato que leva o pensador húngaro, com essas determinações, a assumir uma posição contrária a tendências no interior do próprio marxismo e contra ainda a filosofia hegeliana, ao asseverar a inexistência de uma teleologia na história.

Nota
5 "Após 1848, depois do declínio da filosofia hegeliana e, sobretudo, quando começa a marcha triunfal do neokantismo e do positivismo, os problemas ontológicos não são mais compreendidos. O neokantismo elimina da filosofia a incognoscível coisa em si, enquanto que para o positivismo a percepção subjetiva do mundo coincide com a sua realidade" (LUKÁCS, 1984, p.574; 1990, t.I, p.277).

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