terça-feira, 31 de março de 2015

"Cadernos de Paris & Manuscritos econômico-filosóficos de 1844", de Karl Marx

LANÇAMENTO DA EDITORA EXPRESSÃO POPULAR


Na trajetória de Karl Marx o breve período em que o autor de O Capital viveu em Paris (Outubro/Novembro de 1843/fevereiro de 1845) impactou decisivamente os rumos que sua vida e sua obra tomariam. Naqueles meses, o jovem filósofo iniciou seus estudos de Economia Política, travou contato com o movimento operário e aproximou-se de Friedrich Engels, a partir daí, seu camarada de ideias e de lutas. É então onde o pensamento de Marx começa a experimentar, num complicado processo que haverá de se estender por cerca de dois anos mais, a grande inflexão que dará o sentido e o significado definitivo à sua vida e à sua obra: à dedicação à causa revolucionária dos trabalhadores e a elaboração da crítica da Economia Política.

A historiografia reconhece que os registros dos momentos inaugurais deste complexo processo teórico-político está consignado em dois textos daquele período: os Cadernos de París os Manuscritos econômico-filosóficos de 1844, que permaneceram inéditos por décadas (só integralmente publicados em 1932). Os primeiros foram redigidos como notas de leitura, simples apontamentos para uso pessoal do autor, e os segundos como esboço de um livro nunca concluído (e nos chegaram fragmentos, com passagens de difícil interpretação). Embora diferentes na forma, tais documentos guardam elementos temáticos comuns, constituindo um conjunto unitário: é neles que Marx, na sua original aproximação crítica à Economia Política, formulada a partir de uma perspectiva filosófica-antropológica, estabelece os fundamentos da sua teoria da alienação.

As polêmicas que até hoje cercam os Manuscritos...justificam plenamente mais esta edição em português. Sobretudo porquê, pela primeira vez em nossa língua, a sua leitura pode ser subdisiada com o recurso a anotação dos Cadernos..., até agora inéditos em vernáculo. Com a publicação destes dois textos - antecedidos por longa apresentação do Profº José Paulo Netto e com os Manuscritos... submetidos à competente revisão técnica do Profº Sérgio Lessa -, a Expressão Popular, na sua continuidade de fomentar a batalha das ideias, oferece aos estudiosos da obra de Karl Marx mais um instrumento de trabalho certamente indispensável.
Cadernos de Paris & Manuscritos econômico-filosóficos de 1844

Autor:

Karl Marx

Número de páginas:

496

ISBN:

978-85-7743-255-4

Editora:

Expressão Popular

Categoria:

Dicas de livros e promoções!ClássicosFilosofia

Peso:

505 g
    R$ 35,00

MISÉRIA RELIGIOSA E MISÉRIA REAL

Confira o curso de Michael Löwy sobre "Sociologia marxista da religião", no canal da Boitempo no YouTube: 

AULA 1
Aula de abertura do curso "Sociologia marxista da religião", ministrado por Michael Löwy no curso de pós-graduação em sociologia da USP e viabilizado pelo Programa Escola de Altos Estudos da CAPES. Intitulada "Karl Marx como sociólogo da religião", a aula foi realizada no dia 24 de setembro de 2014 e marcou o lançamento do livro "A jaula de aço". Confira a programação completa das aulas abaixo. As palavras de abertura são de Ruy Braga.


AULA 2

AULA 3





Hegemonia e crise: noções básicas para entender a situação brasileira

Por Alvaro Bianchi e Ruy Braga

A presente situação política no Brasil pode ser caracterizada como uma crise da forma restrita que a hegemonia das classes dominantes adquiriu no Brasil. Em diversos artigos, caracterizamos a forma presente da hegemonia como uma “revolução passiva à brasileira”, ou seja, um processo de atualização gradual do capitalismo por meio de reformas promovidas diretamente pelo Estado, o qual parecia se destacar de suas bases sociais para melhor realizar sua função. Sem a participação ativa das classes subalternas essa revolução passiva representava uma hegemonia de uma fração doa classe dos capitalistas sobre todas as demais frações, por intermédio do Estado.

A variante lulista dessa revolução passiva incorporou a esse bloco hegemônico os setores da burocracia sindical que haviam se convertido em gestores dos fundos de pensão. O arranjo se mostrou muito mais abrangente e ao mesmo tempo resistente do que aquele que havia sido construído sob a direção de Fernando Henrique Cardoso. Os vínculos dessa burocracia social com os movimentos sociais davam uma capacidade de mobilização maior ao governo, uma oportunidade para promover reformas, como a da previdência, que ia além das possibilidades presentes nos anos 1990. A contrapartida estava na realização de políticas sociais compensatórias que permitiam, por um lado, atender certas aspirações das classes subalternas e, por outro, ampliar a base social do Estado por meio da incorporação passiva destas ao arranjo político.

Essa forma da revolução passiva, essa hegemonia restrita, entrou em colapso a partir de meados de 2013. Este pequeno artigo tem a intenção de expor um conceito de crise de hegemonia que nos permitiria entender melhor a presente situação.

Consenso ativo e passivo

Não são poucos os comentaristas que tem destacado a dificuldade que o atual governo tem de construir um consenso e estabelecer alianças efetivas e estáveis. Apesar de ter montado uma megacoalizão e garantido formalmente a maioria dos parlamentares para sua base de apoio, as iniciativas do Executivo tem encontrado forte resistência no Congresso. A eleição de um deputado da base do governo para a presidência da Câmara de Deputados, enfrentando e derrotando outro candidato do partido da presidenta é um sintoma dessa resistência. Mas é preciso distinguir o que ocorre na esfera da representação parlamentar e os desejos, opiniões ou mesmo ações que caracterizam aqueles que deveriam ser representados. Aqui a ênfase não estará na análise do processo de construção de uma maioria parlamentar e sim nos processos sociais subjacentes.

A construção do consenso, seja ativo ou passivo, deve ser entendida como um processo que se desenvolve através de fluxos e influxos, avanços e retrocessos marcados por transformações nas relações de forças entre as classes e entre estas e suas formas institucionalizadas.

Sem poder assimilar toda a sociedade a seu projeto, a capacidade das classes dominantes articularem o consenso e a legitimidade da ordem pode ser abalada, abrindo, então uma situação de contraste entre representados e representantes. Nos momentos em que isso ocorre, os grupos sociais se afastam de suas organizações tradicionais, ou seja, essas organizações e seus líderes não são mais reconhecidos como expressão própria de sua classe ou fração, comprometendo de forma decisiva a capacidade dirigente desses grupos. Seguindo as indicações de Gramsci, esses processos serão denominados de “crise de hegemonia, ou crise do Estado em seu conjunto”.[1]

A situação presente no Brasil é, justamente, aquela na qual os representados não se identificam mais com aqueles que dizem representá-los. Junho de 2013 deveria ter acendido o sinal de alerta. Mas em vez de operar no nível dos representados, o governo optou por voltar-se para os representantes e construir uma arco de alianças parlamentar que lhe garantisse a maioria parlamentar. Até agora isso só fez aumentar a crise e a separação entre representantes e representados.

Classes e partidos

A crise de hegemonia é uma crise do Estado e das formas de organização política, ideológica e cultural da classe dirigente. Seus aspectos mais visíveis são a dificuldade de formar uma maioria parlamentar duradoura; a perda da capacidade dirigente dos partidos tradicionais; e a consequente crise dos partidos e multiplicação destes. Em suma, trata-se de tentativas desordenadas de superação da crise.

A divisão dos partidos tradicionais – PT, PSDB, PMDB e PSD – e as crises internas que os atravessam são, assim, manifestações dessa crise. O mesmo ocorre em escala microscópica nos pequenos partidos da oposição de esquerda. A dificuldade de compor uma maioria partidária estável e os choques permanentes entre as diferentes claques, reproduzem nos partidos os mesmos problemas encontrados no governo e no Parlamento. Nos choques entre as diferentes frações e partidos, a corrupção encontra terreno fértil para se desenvolver. Cada fração considera a si mesma a única com condições de superar a crise do partido, assim como cada partido considera-se o único capaz de superar a crise da nação. Os fins passam a justificar os meios.

A crise não se limita, entretanto, aos partidos e ao governo. Ela é uma crise do Estado em seu conjunto, ou seja, processa-se, também, no nível da sociedade civil, onde as classes dirigentes tradicionais passam a manifestar sua crescente incapacidade de dirigir toda a nação. A burocracia, a alta finança, as igrejas, os grandes monopólios de comunicação e todos aqueles organismos relativamente independentes da opinião pública têm suas posições reforçadas no interior do Estado.[2]A repercussão da crise no conjunto do Estado pode provocar, dessa forma, o “deslocamento da base histórica do Estado” e a supremacia do capital financeiro.[3]

A característica fundamental da crise de hegemonia não é, então, o “vazio de poder”, que a rigor poderia ser ocupado por qualquer um, até mesmo por um aventureiro ou um grupo deles. A política, assim como a natureza também tem “horror ao vácuo”. A crise de hegemonia se caracteriza não pela inexistência de poder, o vazio, e sim por uma multiplicidade deles. Poderes plurais e policêntricos que têm como portadores diferentes grupos sociais que lutam incessantemente pela afirmação de sua alternativa. É claro que essa situação não pode se prolongar indefinidamente. Sem nenhuma capacidade dirigente, as classes dominantes ou frações dela podem ser deslocadas do poder, deixando de ser dominantes.

Relações de forças

Quais são as razões que levam ao surgimento de uma crise dessas proporções? O que faz com que a capacidade dirigente de uma classe seja abalada de maneira tão profunda?

Se o Estado é entendido como condensação material das relações de forças entre as classes e frações, condensação essa historicamente definida e, portanto, particular e específica em cada situação, então, a crise só pode ser compreendida como o resultado do abalo das relações de forças que se materializavam nesse Estado.[4]

A eclosão da crise é, assim, definida pelas lutas que opõem as classes umas às outras, lutas nas quais os diferentes projetos alternativos vão se desenhando e aglutinando defensores. É afirmada pela ruptura da passividade de certos grupos sociais e pela sua entrada ativa no cenário político, desequilibrando arranjos de poder que tendiam a excluir esses grupos. Na situação presente a crise foi agravada pela ativação simultânea de uma parte ainda minoritária das classes subalternas, com especial participação do precariado urbano, e das camadas médias que entraram em cena com um programa político de reestabelecimento de seus privilégios sociais.

Não há nenhuma surpresa aí. Afinal, nos últimos 12 anos, tendo em vista um modesto, porém, real processo de desconcentração de renda entre aqueles que vivem dos rendimentos do trabalho, a base da pirâmide ocupacional progrediu em um ritmo mais acelerado do que os setores médios. Ou seja, houve uma diminuição da distância entre as classes sociais cuja expressão mais visível pode ser encontrada na “invasão” dos espaços outrora exclusivos das camadas médias tradicionais por uma massa plebeia, como aeroportos e shoppings centers. Não devemos subestimar o impacto que um mercado de trabalho aquecido tem sobre a disposição social dos trabalhadores subalternos, notoriamente, as empregadas domésticas, em resistir a situações aviltantes de trabalho. O “desassossego na cozinha” é um fenômeno que inquieta os setores médios tradicionais, afetando o dia-a-dia dos privilégios de classe que marcam de maneira tão acentuada a realidade brasileira.

Além disso, na última década, a inflação dos serviços foi 35% superior à inflação da cesta básica. Obviamente, os setores médios foram mais atingidos, pois têm acesso a mais opções e oportunidades de desfrutar de atividades de lazer, etc. Finalmente, vale destacar que a própria perspectiva de reprodução futura das camadas médias vê-se transtornada tanto pelo aprofundamento do processo da crise econômica quanto pelo aumento da concorrência por empregos que pagam mais do que cinco salários mínimos. Afinal, com as políticas afirmativas no sistema universitário federal somadas ao aumento de matrículas no sistema privada de ensino superior proporcionado pelo FIES, os filhos da classe média tradicional tendem a encontrar mais competição no mercado de trabalho do que no passado. A situação torna-se ainda mais crítica com o aprofundamento da crise econômica. Não nos esqueçamos que em 2014, 97,5% dos empregos criados no mercado formal de trabalho pagam até 1,5 salário mínimo. Os jovens de classe média vão concorrer por 2,5% das vagas de emprego melhor remunerado com uma massa cada dia maior de jovens plebeus que entram mais qualificados no mercado.

Em suma, as camadas médias têm lá suas razões para afastar-se do governo de Dilma Rousseff. No entanto, o dado mais carente de explicação é a presença, segundo o Datafolha e pesquisas independentes, de aproximadamente 50 mil pessoas que vivem em famílias que ganham até três salários mínimos na manifestação do dia 15 de março. Trata-se da fração de classe que garantiu a vitória de Dilma no segundo turno em 2014 e que preenche a maior parte das ocupações precárias e sub-remuneradas disponíveis no mercado de trabalho paulistano. Este setor da classe trabalhadora foi mais atingido pelo ataque do governo federal ao seguro-desemprego (PL 664 e 665), além dos cortes no FIES. Ou seja, em apenas três meses, o governo aplicou medidas que atingem diretamente os interesses de classe de amplos setores de jovens trabalhadores que identificam na qualificação superior a única possibilidade de romper com o círculo vicioso da precarização do trabalho.

O parlamento, local de mediação dos conflitos no Estado liberal mostrou-se incapaz de absorver estes novos atores. Nem o jovem precariado, nem as camadas médias se veem representadas no parlamento. Uma parcela importante dessa insatisfação se expressou nas últimas eleições por meio da abstenção e dos votos branco ou nulo. Outra parcela manifesta-se abertamente em favor de uma intervenção militar.

A ascensão desses novos atores não define, entretanto, todo o conteúdo da crise. É preciso ter em mente a forma sob a qual essa ascensão ocorre. O Partido dos Trabalhadores foi sempre incapaz de transcender o nível do classismo prático e, portanto, de apresentar um projeto que permitisse reordenar toda a sociedade a sua imagem. Quando chegou ao poder aferrou-se aquilo que já existia, procurando apenas aperfeiçoar o projeto existente.

As classes subalternas ainda não possuem uma direção capaz de colocar-se à frente de seu movimento e imprimir a ele um conteúdo claramente transformador. A crise não atingiu apenas a burguesia e o parlamento. Ela é, também, uma crise de direção das classes subalternas, que não conseguem impor seu projeto hegemônico muito embora consigam desarticular a hegemonia das classes dominantes. É, para usar uma terminologia cunhada por Trotsky, mas também presente em Gramsci, uma crise de direção que atinge de maneira combinada, mas desigual, tanto a burguesia como o proletariado.

Crise orgânica

Encontrar a solução orgânica para essa crise não é simples. Ela exige a unificação de um grande número de partidos sob a bandeira de um único partido, “que melhor representa e resume as necessidades de toda a classe”.[5] As tentativas são inúmeras. A atual crise será um processo de longo prazo no qual se desenvolverão permanentemente experiências visando sua superação. Partidos irão se alinhar e realinhar, blocos serão formados e dissolvidos. Líderes serão criados e depostos. A velocidade desses processos pode surpreender, o ritmo é rápido e fulminante se comparado com os tempos normais. A crise acelera essa dimensão, recriando a noção de tempo, redefinindo o tempo histórico.

A cada tentativa de resolução dessa crise ela cobra um novo desenho. O fracasso dessas tentativas não conduz, entretanto ao ponto de origem. Ganhos e perdas são contabilizados por cada grupo ou fração. Caso contrário a catástrofe seria iminente. E sabe-se muito bem que ela necessariamente não é.

As possibilidades de articular um projeto alternativo ou de alinhar defensores atrás desses projetos, criando tentativas de resolução da crise, são, entretanto, assimétricas. As classes dominantes tradicionais, ao contrário das classes subalternas, contam com grande número de intelectuais, numeroso pessoal especializado capaz de formular projetos e organizar sua defesa. Podem mudar de pessoal dirigente, de programa e mesmo de partido, de modo a oferecer, rapidamente, uma saída para a crise. Não raro, constroem a unidade que até então parecia impossível ser alcançada, perfilando-se sob a direção do partido que melhor encarna as necessidades de todas as classes dominantes naquele momento. E as necessidades, nessas ocasiões, não são outras que a superação da própria crise.

Mesmo tendo condições mais favoráveis para decidir rapidamente o conflito a seu favor, as classes dominantes tradicionais nem sempre o conseguem. Isso ocorre quando já amadureceram contradições na estrutura que as classes sociais que atuam para conservar e defender essa estrutura não conseguem resolver, ao mesmo tempo em que as classes que lutam pela sua transformação profunda não conseguem tornar-se dirigentes.[6]

Colocado de tal maneira o problema, tem-se que a crise política não é definida automaticamente pela crise econômica. A crise econômica, tomada em seu sentido amplo como crise de acumulação resultante da queda tendencial da taxa de lucro, pode ser pressuposto de um profundo abalo político. Mas ela não conduz, por si própria, à crise de hegemonia. Para a eclosão desta crise é preciso a coincidência dos tempos de uma crise de acumulação com o acirramento do choques entre as classes, e, no interior delas, entre suas frações. Haveria, assim, uma coincidência no tempo de uma crise econômica e outra política, ou o que Gramsci chama de uma crise orgânica, uma crise que afeta o conjunto das relações sociais e é a condensação das contradições inerentes à estrutura social.[7]

Esta não é ainda a realidade da atual crise brasileira. No entanto, é importante destacar que as demissões estão apenas no começo, as falências e o fechamento de empresas ainda não é a regra, o governo federal está totalmente rendido e convencido da necessidade de realizar um duríssimo ajuste fiscal antipopular, e os setores de oposição de direita tradicionais não recuam e têm apostado no aprofundamento da crise política do “Petrolão”. Em resumo, os ritmos da crise econômica e da crise política parecem convergir para um ponto de difícil retorno. O país entrou em sintonia com a crise do sul da Europa? Difícil prever. Mas, não seria nada surpreendente que, assim como ocorreu recentemente na Grécia, na Itália e na Espanha, o desafio ao sistema político tradicional – e ao bipartidarismo PT-PSDB que há mais de vinte anos tem marcado a cena política brasileira – evoluísse na direção do fortalecimento de novos atores localizados nos extremos do espectro político. A radicalização é a tendência atual. Quem viver verá.

Notas:
[1] Antonio Gramsci.Qauderni del carcere. Torino: Einaudi, 1977, p. 1603.
[2] Idem, p. 1603.
[3] Idem, p. 876.
[4] Poulantzas, Nicos. “Les transformations actuelles de l’État, la crise politique et la crise de l’État”. In: Poulantzs, Nicos (org.). La crise de l’État. Paris, PUF, 1976, p. 22.
[5] Idem, p. 1604.
[6] “O aspecto da crise moderna que é lamentado como ‘onda de materialismo’ está vinculado àquele que se chama ‘crise de autoridade’. Se a classe dominante perdeu o consenso, isto é, não é mais ‘dirigente’ mas unicamente dominante, detentora da pura força coercitiva, isto significa justamente que as grandes massas se separam das ideologias tradicionais, não creem mais em tudo o que acreditavam antes, etc. A crise consiste precisamente no fato de que o velho morre e o novo não pode nascer: neste interregno se verificam os fenômenos mórbidos mais variados.” (Idem, p. 311.)

[7] Poulantzas, Nicos. Op. cit., p. 10.


segunda-feira, 30 de março de 2015

Dirigentes querem que PT retome "radicalidade"

PT divulga manifesto com dez propostas para enfrentar crise política 
Documento sugere, entre outros pontos, apoio à taxação de grandes fortunas. No texto, PT alega que querem fazer da sigla "bode expiatório" da corrupção.


Dirigentes defendem que PT "corrija rumos" e "saia da defensiva"


GUSTAVO URIBE

MARINA DIAS
CATIA SEABRA
DE SÃO PAULO


No momento em que o PT enfrenta uma das maiores crises de sua história, os diretórios estaduais da sigla divulgaram nesta segunda-feira (30) um manifesto no qual defendem que é hora de a legenda "assumir responsabilidades", "sair da defensiva" e "corrigir rumos".

O documento reconhece que, em seus 35 anos de história, o partido cometeu erros e deve retomar os valores que pautaram a sua criação, em 1980.

O ponto de partida para a mudança seria o V Congresso do PT, marcado para junho, na Bahia. "A fim de que retome sua radicalidade politica, seu caráter plural e não dogmático", pregou.

No documento, os dirigentes estaduais da sigla defendem dez bandeiras tradicionais da esquerda para reaproximar o partido, e consequentemente, o governo da presidente Dilma Rousseff (PT), da base social da legenda.

As principais propostas são a orientação da bancada petista no Congresso Nacional a aprovar proposta de taxação de grandes fortunas, que sofre resistências de setores do governo federal, a aprovação das reformas política e tributária e a ampliação dos direitos trabalhistas, na contramão do ajuste fiscal elaborado pelo ministro Joaquim Levy (Fazenda).

"A hora não é de recuo, é de avançar com coragem e determinação", diz o texto, que defende ainda a formação de uma ampla frente de esquerda com partidos de esquerda, movimentos sociais e centrais sindicais, inspirado no que existe no Uruguai.

CORRUPÇÃO

Baseado na tese "nós contra eles", utilizada pela equipe de Dilma na última campanha eleitoral, os dirigentes estaduais afirmam que os setores da oposição "querem fazer do PT bode expiatório da corrupção nacional e de dificuldades passageiras da economia".

As lideranças petistas comparam os ataques sofridos pelo partido, em meio às investigações do esquema de corrupção na Petrobras, ao sequestro do empresário Abílio Diniz, em 1989, que, segundo eles, foi "imputado ao PT".

Os dirigentes estaduais dizem que o partido é alvo de uma campanha de "cerco" e "aniquilamento" e setores da oposição que tentam "criminalizar" o PT.

"O PT precisa identificar melhor e enfrentar a maré conservadora em marcha. Combater com argumentos e mobilização a direita e a extrema direita minoritárias."


Por que a data do golpe de Estado é 1º de abril de 1964, e não 31 de março

Por Mário Magalhães
Isso mesmo: 1º de abril de 1964, e não 31 de março.
Reproduzo o arrazoado publicado pelo blog no cinquentenário do golpe de Estado.
Podem espernear, mas a data é mesmo a do Dia da Mentira.
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Ninguém deveria perder fios de cabelos, colecionar mais rugas e encrencar por conta uma controvérsia que não altera o essencial: em 31 de março ou 1º de abril de 1964, o presidente constitucional João Belchior Marques Goulart foi deposto por um golpe de Estado que fuzilou a democracia e pariu uma ditadura.
A controvérsia não altera o essencial, mas existe.
Algumas versões difundidas recentemente, com o propósito ou não de referendar o dia 31 como “a data”, não encontram lastro nos fatos.
Um eminente historiador afirma que as tropas golpistas do Exército começaram a descer de Minas rumo ao Rio ainda no dia 30 de março de 1964. Falso.
Um jornal sustenta que a queda de Jango ocorreu em 31 de março. Se a data do golpe permite legítimas interpretações, constitui equívoco grave estabelecer o dia 31 como o da saída do presidente.
Um líder estudantil daqueles tempos escreve que a polícia política atacou dirigentes sindicais, reunidos no Rio, na sede de uma entidade de estivadores, ainda em 30 de março. Errado: foi na tarde de 31.
Os três relatos mencionados conspiram para sacramentar 31 de março como o dia do golpe.
Como se sabe, os golpistas sempre defenderam essa, digamos, tese.
Os opositores da ditadura costumam (ou costumavam) preferir 1º de abril, o Dia da Mentira: os golpistas alegaram que apeavam Goulart do poder para salvar a democracia; acabaram por asfixiar as liberdades por 21 anos.
Ignoremos os interesses dos contendores e nos submetamos aos fatos.
As tropas começaram a se mover de Minas só com o dia claro, em 31 de março.
O general Olímpio Mourão Filho narrou que se recolheu aos seus aposentos, em Juiz de Fora, na noite de 30 de março, enquanto Jango discursava no Automóvel Club do Brasil, no Rio.
Comandante da 4ª Região Militar e da 4ª Divisão de Infantaria, Mourão desencadeou o movimento, junto com o general Carlos Luís Guedes. Seu plano era dar a largada na marcha entre 4h e 5h do dia 31.
De manhã, as tropas ainda estavam em Juiz de Fora. Lá, às 7h de 31 de março, o tenente Reynaldo de Biasi Silva Rocha ministrou instrução de combate à baioneta. “Quem quer passar fogo nos comunistas levante o fuzil!”, gritou.
Às 11h30, o chefe do Estado-Maior do Exército, Humberto de Alencar Castello Branco, disse por telefone ao general Guedes, que permanecia em Minas: “A solução é vocês voltarem, porque senão vão ser massacrados”. O general Castello em breve se tornaria marechal e presidente da República.
Ao meio-dia de 31 de março, Jango estava no Rio. No Palácio Laranjeiras, disse que havia “muito boato”, mas nada de concreto, sobre rebelião militar.
Só por volta das 16h15 doze carros do Departamento de Ordem Política e Social pararam em frente ao edifício da Federação Nacional dos Estivadores. Tentaram prender os dirigentes do Comando Geral dos Trabalhadores, mas estes foram socorridos por soldados da Aeronáutica fiéis a Jango.
Até pouco depois do meio-dia de 1º de abril, João Goulart não arredava pé do Palácio Laranjeiras, local dos despachos presidenciais no Rio (a capital já se transferira para Brasília). Como poderia ter sido derrubado na véspera, 31 de março? Por volta das 13h, na 3ª Zona Aérea, Jango embarcou para Brasília.
Só na madrugada de 1º de abril as tropas que decidiriam a parada, as do II Exército, de São Paulo, começaram a se preparar para marchar sobre o Rio. Mas ainda esperavam, como escreveu Elio Gaspari em “A ditadura envergonhada”: “Ao amanhecer do dia 1º de abril Kruel persistia na posição de emparedar Jango sem depô-lo”. O general Amaury Kruel comandava o II Exército.
Sem a adesão de Kruel a deposição do presidente não prosperaria.
Em 1º de abril, prosseguiam em seus postos no Rio oficiais legalistas, submetidos ao comandante-supremo das Forças Armadas, o presidente Jango. Era o caso do general Oromar Osório, comandante da 1ª Região Militar (logo ele voaria para Porto Alegre) e do brigadeiro Francisco Teixeira, comandante da 3ª Zona Aérea.
Só em 1º de abril o Forte de Copacabana passou às mãos dos golpistas. Ao seu lado, o QG da Artilharia de Costa foi tomado às 11h30.
Preocupados com o fato de que golpearam no 1º de abril, oficiais mentiram sobre a data da virada de mesa no Forte de Copacabana, datando 31 num relatório. Assinalou Gaspari: “Na realidade, os acontecimentos se passaram exatamente um dia depois, 27 horas depois de Mourão e sete depois de Kruel”.
Em Minas, muitos golpistas cascateavam ter marchado no dia 31, Gaspari observou: “Com o tempo tanto a adesão do coronel Raymundo [Ferreira de Souza] como a dos oficiais do 1º BC passaram a ser assinaladas como estandartes de uma marcha triunfal e a ser antecipada para a noite do dia 31 pela historiografia do êxito. Apesar das conversas na noite anterior, [o general Antonio Carlos] Muricy só recebeu os pelotões do 1º BC por volta de meia-noite, e a adesão do comandante do 1º RI só se consumou às sete horas da manhã seguinte [1º de abril]”.
Na Cinelândia, à qual uma multidão acorreu para protestar a favor de Jango e da Constituição, a batalha ocorreu na tarde de 1º de abril, e não na véspera. Do prédio do Clube Militar, golpistas abriram fogo, ferindo e matando manifestantes.
O marco da queda de João Goulart é sua partida de Brasília, na noite de 1º de abril de 1964. Ele aterrissou em Porto Alegre de madrugada do dia 2 e resolveu não resistir. Na mesma madrugada, era empossado presidente o deputado golpista Ranieri Mazzilli, que presidia a Câmara.
Fonte insuspeita, o velho general Cordeiro de Farias anotou: “A verdade _é triste dizer_ é que o Exército dormiu janguista no dia 31. E acordou revolucionário no dia 1º”.
Os movimentos em Minas iniciaram mesmo no dia 31 de março. E só. Como o Exército que dormira janguista poderia ter golpeado antes de o sono chegar?
No Rio, onde se concentravam os contingentes das três Forças Armadas, pode-se considerar que o golpe se consumou pelas 16h de 1º de abril. Mais ou menos naquele horário, os tanques do Exército que protegiam o Palácio Laranjeiras o abandonaram e estacionaram centenas de metros além. Passaram a defender o Palácio Guanabara, onde estava o governador golpista Carlos Lacerda.
A data do golpe é 1º de abril de 1964. Os fatos são claros.
Mas, reitero, não valem desinteligências acaloradas.
Na véspera ou no dia seguinte, aconteceu o que, para o bem do Brasil, seria melhor não ter acontecido.

domingo, 29 de março de 2015

Alvos da Lava Jato bancam 40% das doações a partidos

PT, PMDB e PSDB receberam 557 milhões de 21 empresas investigadas
O conjunto das empreiteiras investigadas pela Operação Lava Jato foi responsável, em média, pela doação de 40% dos recursos privados canalizados para os cofres dos três principais partidos do País - PT, PMDB e PSDB - entre 2007 e 2013. No período, as legendas, somadas, receberam pelo menos R$ 557 milhões de 21 empresas envolvidas no escândalo.
Em valores absolutos, o PT foi o principal beneficiado pelos repasses oficiais do cartel acusado de superfaturar obras na Petrobrás. Mas o cerco ao grupo também ameaça as finanças do maior partido de oposição: 42% das doações privadas recebidas pelo PSDB vieram das empresas investigadas.
É nesse contexto de crise de financiadores que o Congresso decidiu triplicar a destinação de recursos públicos para o Fundo Partidário, que banca parcialmente o funcionamento das legendas. Na votação do Orçamento da União, há duas semanas, a dotação do fundo foi elevada de R$ 290 milhões para R$ 868 milhões.
No período de sete anos analisado pelo Estadão Dados, o PT recebeu R$ 321,9 milhões das empreiteiras investigadas, em valores atualizados pela inflação. O PSDB recebeu menos da metade: R$ 137,9 milhões. Os dados se referem somente às doações feitas aos diretórios nacionais dos partidos.
A Operação Lava Jato, que investiga desvios e superfaturamentos de contratos de empreiteiras com a Petrobrás, desvendou a existência de um cartel formado por quase todas as grandes empresas de construção do País. Cinco delas - Andrade Gutierrez, Queiroz Galvão, Camargo Corrêa, Grupo Odebrecht e OAS - respondem por quase 77% dos repasses feitos pelas empresas investigadas aos três partidos nos últimos anos.

Foco

As doações do chamado cartel da Lava Jato estão sob os holofotes da Justiça por causa da suspeita de que camuflavam pagamentos de propina. Com base em depoimentos de envolvidos no escândalo, o Ministério Público Federal afirma que repasses oficiais feitos ao PT eram, na verdade, pagamento em troca de benefícios em contratos firmados com a Petrobrás. Outros partidos, como o PMDB e o PP, teriam se utilizado de canais diferentes para coletar recursos desviados.
Augusto Mendonça, diretor do grupo Setal, entregou à Justiça Federal recibos de doações partidárias e eleitorais feitas por suas empresas para o PT entre 2008 e 2012. Segundo ele, era dessa forma que se dava o pagamento de propinas desviadas da Petrobrás. Mendonça foi preso e assinou um acordo de delação premiada com os promotores.
O ex-diretor da Petrobrás Paulo Roberto Costa, que também colabora com as investigações em troca de redução de penas, já declarou em depoimento que as doações aos partidos são, na verdade, "empréstimos" cobrados posteriormente na forma de benefícios em seus negócios com o governo.
Líderes do PT negaram o envolvimento em irregularidades e acusaram os procuradores do caso Lava Jato de tentar criminalizar doações feitas conforme as determinações legais - com recibo e registradas no Tribunal Superior Eleitoral. Petistas também alegaram que as empresas acusadas financiaram diversos partidos, inclusive os de oposição.
No PT, o principal alvo dos procuradores é o tesoureiro João Vaccari Neto. Segundo denúncia apresentada pelo Ministério Público e acolhida pela Justiça, Vaccari participou de reuniões com Renato Duque, então diretor de Serviços da Petrobrás, nas quais teriam sido acertados pagamentos de propinas ao PT na forma de doações legais.
Segundo o Luiz Flávio D'Urso, advogado de Vaccari, o tesoureiro "não recebeu ou solicitou qualquer contribuição de origem ilícita destinada ao PT". As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

"O PT, infelizmente, se descolou das bases populares"

Segundo Frei Betto, um dos fundadores do PT, partido transformou movimentos sociais em representantes do governo junto às bases


Por Gabriel Vasconcelos, João Pedro Soares e Octávio Costa




Carlos Alberto Libânio Christo, o Frei Betto, é um dos principais nomes da esquerda brasileira. Amigo e compadre de Lula, Betto participou dos dois primeiros anos petistas no Planalto e saiu disparando críticas, relatadas nos livros “Mosca Azul” e “Calendário do Poder”, duas das 60 obras publicadas pelo teólogo dominicano. Também foi o principal articulador da aproximação da Igreja Católica com o regime de Fidel Castro, em Cuba. Ainda hoje, é próximo do líder cubano. Nesta entrevista, Betto mostrou-se descontente com o distanciamento do PT em relação aos movimentos sociais, “transformados muito mais em representantes do governo junto às bases do que representantes de suas bases junto ao governo”. Diz que fica indignado quando vê, nas eleições, pessoas pagas para segurar cartazes de propaganda do PT: “Isso é um sinal de que o partido, infelizmente, se descolou de suas bases populares”. Nesse contexto, prevendo a ruptura com o PMDB em 2018, acredita que a continuidade do projeto petista está ameaçada. “Pela primeira vez, a candidatura Lula não é garantia de eleição”.


O sr. está descontente com o governo. Por quê? 


Sempre mantive uma visão crítica de qualquer governo, inclusive de Lula e Dilma, nos quais votei nas últimas eleições. Quem leu meus livros sabe o quanto eu esperava um rumo que o governo não abraçou. Continuo pensando que este governo é um mal menor. Prefiro Dilma a um Aécio (Neves), por exemplo. Mas é um governo que decepciona quanto às expectativas que foram criadas desde a fundação do PT, em 1980. Desta vez, eu esperava apenas que a presidente Dilma fosse coerente com as promessas de campanha. Eu, Leonardo Boff e outros companheiros e companheiras da Teologia da Libertação tivemos um encontro de pouco mais de uma hora com ela no Planalto após a eleição. Apresentamos um documento de críticas e reivindicações que ela recebeu muito bem. Por isso, não esperava que ela fosse adotar uma política econômica muito mais adequada ao que seria um governo do PSDB, ou que fosse nomear uma Kátia Abreu para a Agricultura.



Quais as principais mudanças no governo dela? 


Durante esses últimos anos houve uma política neodesenvolvimentista, eu diria até um capitalismo populista, que favoreceu as camadas mais pobres da população, tirando 36 milhões de pessoas da miséria. Mas não se criou uma política de sustentabilidade dessa política. Em 12 anos de governo, o PT não fez nenhuma das reformas que prometia em seus documentos originários, nem a agrária, nem a tributária e nem a política. Agora, chegou a hora de pagar a conta, porque o buraco existe. E, para isso, se adotou uma política econômica que penaliza os mais pobres. E não há nenhuma dessas propostas do Joaquim Levy que penalize os mais ricos.



Em que sentido? 


Ainda hoje, nosso sistema tributário se baseia mais no consumo do que na produção. Penaliza o consumidor, e não o capital. Ainda tivemos uma vulnerabilização dos direitos conquistados pelos mais pobres, com cortes no seguro desemprego e nas pensões. Não houve redução da jornada de trabalho para 40 horas semanais, que evitaria a volta do desemprego, e não acabaram com o fator previdenciário. Não há uma decisão quanto à tributação de heranças, dos royalties, da transferência de grandes fortunas. É preciso que a pressão social e institucional se fortaleça. Governo é como feijão, só funciona na panela de pressão.




A pressão de hoje é desqualificada pelo governo, atribuída a uma classe média mais abastada. O sr. concorda?



De jeito nenhum. Considero as duas manifestações extremamente positivas como exercício da democracia e expressão da cidadania. Mas acho que houve um equívoco da parte dos que apoiam o governo em convocar para a sexta-feira 13, um dia de trabalho, em que as pessoas estão ocupadas e as ruas estão lotadas de veículos. Os opositores convocaram inteligentemente para um domingo em que as ruas estão livres, e as pessoas folgadas para sair de casa para se manifestar.  


O sr. fala muito sobre o descolamento do PT de suas bases originais... 



O PT chegou à Presidência por força dos movimentos sociais. E, ao chegar, abandonou os movimentos, não assegurou a governabilidade por meio deles. Preferiu a via do mercado e do Congresso, com as alianças partidárias, muitas delas espúrias. Isso levou o PT a trocar um projeto de Brasil, que implicava em reformas estruturais, por um projeto de poder. Manter-se no poder se tornou mais importante do que mudar a feição estrutural deste país injusto e desigual, embora as políticas tenham diminuído o sofrimento dos mais pobres. Hoje, tenho muita dificuldade em ver uma recuperação do PT. Minha previsão é de que o PMDB não apoiará o PT em 2018, e não duvido que faça aliança com o PSB para sair com candidato próprio. Pela primeira vez a candidatura Lula, que sem dúvida virá, não é garantia de eleição.



Mas pelo carisma e influência que tem no PT, Lula é um candidato forte... 


Sim, visto de hoje ele é mesmo um candidato muito forte, o mais forte que existe. Mas nós estamos começando um processo de quatro anos. Serão quatro anos de turbulência, muitas mobilizações, greves, reivindicações para um governo que perdeu o rumo, que tem políticas pontuais, mas não tem estratégia. A cada manifestação, o governo diz que vai atender a isso ou aquilo. Não se pode governar um país da grandeza do Brasil na base de concessões pontuais. É preciso ter uma estratégia. Mas com a aliança partidária e o cerco que o Legislativo montou com Eduardo Cunha e Renan Calheiros, fazendo o Executivo sangrar literalmente, duvido muito que o PT consiga retomar a aliança consolidada que lhe permitia vitórias no parlamento. Mais do que nunca, o partido precisa se voltar para os movimentos sociais.



É viável governar só com os movimentos sociais?

O que garante a governabilidade de qualquer poder em qualquer parte do mundo é o apoio popular. Mas o PT perdeu esse vínculo com as bases populares. Fico indignado quando, nas eleições, vejo pessoas desocupadas, em geral jovens, que são pagos para segurar cartazes de propaganda do PT nas esquinas, quando antigamente havia toda uma multidão de militantes voluntários que passava as noites fazendo propaganda para o partido. Hoje, os poucos movimentos sociais totalmente alinhados, como a UNE e a CUT, foram transformados mais em representantes do governo junto às bases, do que representantes de suas bases junto ao governo, como é o correto. Temos um governo que é resultado desses movimentos, mas que não crê que é possível governabilidade com seu apoio.


Documento vazado do Planalto diz que a militância petista se sente acuada pela corrupção e desmotivada porque não compreende a nomeação de Joaquim Levy... 


Está corretíssimo. Por um lado, o PT fala que é expressão do MST e do MTST, mas, por outro, adota uma política conservadora. Quem assistiu ao filme “Adeus, Lenin” poderia fazer uma comparação. Se algum petista tivesse entrado em coma em agosto de 2014, despertasse agora e visse o noticiário, estaria convencido de que Aécio venceu a eleição.



No cenário atual, é possível dar a guinada que o sr. propõe? 


Se o Executivo ousasse ser fiel aos programas originários do PT e adotasse uma política de reforço do mercado interno, com auditoria da dívida pública, que hoje consome 40% do orçamento da União, se ousasse dar essa volta por cima, conseguiria mobilizar aqueles que sempre o elegeram, em quatro mandatos. Mas isso seria quase um milagre.


Por quê?


Quando vejo no noticiário que o PT ainda busca fortalecer sua aliança com o PMDB, duvido muito que se levante pela governabilidade via movimentos sociais. Isso deveria ter começado em 2003, 2004. Perdeu-se a oportunidade, os movimentos sociais foram escanteados; se queixam de não serem ouvidos, a não ser em momentos de eleição. Fico indignado quando o governo federal adota o lema “Brasil, Pátria Educadora” e no dia seguinte corta R$ 14 bilhões do orçamento do Ministério da Educação.


O mesmo documento diz que é difícil fazer o eleitor acreditar que a inflação está sob controle quando ele vê o preço da gasolina subir 20%, e a conta de luz, 33%. 


Um dos equívocos do governo foi facilitar o acesso do povo aos bens pessoais, e não aos bens sociais, ao contrário do que a Europa fez no início do século 20. Você vai a um barraco de favela e lá tem TV, geladeira, talvez um computador e até um carro pago em 90 prestações. Mas a família continua no barraco sem saneamento. O brasileiro teve acesso aos bens sociais, mas não teve acesso a educação, saneamento, moradia e segurança. Essa foi a cobrança de 2013.


Qual a diferença para os protestos atuais? 


Uma das características preocupantes, tanto dos movimentos de 2013 e 2014, quanto de agora, é que eles são de protesto, e não de propostas. Isso cria um caldo de cultura favorável ao neofascismo, para que se espere um salvador da pátria. Nem a esquerda, nem a direita tem propostas. O governo não tem estratégia, o governo tem medidas pontuais, como essa agora de combater a corrupção. Mas por que o PT não se posiciona em relação ao mensalão e à Petrobras? Ficam em cima do muro, esperando que a Justiça decida. As pessoas não são bobas, tem uma hora que começam a pensar: “Bom, se não tomam uma posição...”. Acaba fazendo com que os militantes, aqueles que são íntegros, sejam confundidos com os responsáveis pelas suspeitas de corrupção.



O sr. falou na possibilidade de surgir um “salvador da pátria”. Há um clima golpista? 


Não. De jeito nenhum. Primeiro, por uma razão subjetiva: as Forças Armadas estão desmoralizadas. Elas mesmas não têm mais interesse em uma intervenção política no país. O desgaste dos 21 anos de ditadura foi muito grande para os militares. Segundo, os Estados Unidos custaram, mas aprenderam que golpes na América Latina desgastam muito o discurso democrático com o qual tentam convencer o mundo inteiro. Eu até digo que o único país das Américas onde não teve golpe foi os EUA, porque, lá, não tem embaixada americana. Nos demais, todos tiveram, em algum momento, um golpe militar patrocinado pelos EUA. Não creio que haja qualquer clima de golpismo, intervenção militar, nada disso. Nem de impeachment. Porque qual é a alternativa? O PMDB com o Michel Temer na presidência? Não é isso que as pessoas querem.

Mas por que se fala tanto disso?

Inconscientemente, as pessoas estão em busca de um projeto político. Nem a situação, nem a oposição apresentam esse projeto. Como estamos em um momento de carência ideológica, de grandes narrativas, de referências históricas, a discussão baixou do racional para o emocional. Quando você perde a visão da floresta, fica discutindo a cor da casca da árvore. E não adianta querer resolver a questão por essa discussão, é preciso ver o conjunto da floresta. Por isso, as pessoas falam em ódio, em disputas familiares por discordância política. As pessoas não estão tendo a serenidade de uma visão a médio e longo prazo. Está tudo no pontual, e, assim não vamos a lugar nenhum. 


A presidenta insiste em programas anticorrupção e na necessidade da reforma política. Isso resolve? 



Teve 12 anos para isso e não fez. Agora, quem garante que, com este Congresso, a reforma política vai, realmente, moralizar um pouco a política brasileira, democratizar mais o país e assegurar uma série de determinações constitucionais que não foram regulamentadas como deviam?



O fim do financiamento empresarial de campanha satisfaria, em parte, a demanda da opinião pública? 


Seria uma medida importante, mas é pontual. Mesmo que se acabe com isso, e acho muito importante que se faça, o caixa 2 vai continuar. Não há como evitar que isso ocorra. Não creio em ética do político, creio em ética na política. É preciso criar uma institucionalidade política que iniba o representante de corromper ou ser corrompido.



O que seria isso exatamente?


Não se cria uma moralidade que faça com que o empreiteiro perca a ânsia de corromper. Agora, quando você tem um juiz Sérgio Moro, uma Justiça que atua com eficiência e transparência, isso cria uma inibição. A mãe da corrupção é a impunidade. Costumo dizer que o ser humano tem dois problemas insolúveis: defeito de fabricação, que a Bíblia chama de pecado original, e prazo de validade.


Se o senhor assessorasse a Dilma, como fez com o Lula,  o que aconselharia? 


Eu repetiria o que disse a ela no dia 26 de novembro: para convocar os movimentos sociais e formadores de opinião que apoiam o governo para criar um conselho permanente de avaliação crítica do governo e de suas propostas. Reunindo, principalmente, as lideranças dos movimentos sociais. Lula tentou isso em 2003, com o chamado Conselhão, que acabou sendo engolido pelo empresariado e pelos banqueiros, a ponto de os líderes de movimentos populares e sindicais se sentirem incomodados ali dentro. Eles se afastaram e o Conselhão se esvaziou. Dilma precisa buscar sua legitimidade com os movimentos sociais. Foi o que Evo Morales fez na Bolívia. Ele não tinha apoio do Congresso. Em vez de fazer alianças espúrias, buscou apoio dos movimentos sociais, que conseguiram destacar lideranças eleitas para o Congresso. Hoje, ele tem apoio da base popular e do Congresso da Bolívia.



Ela não perderia o apoio de partidos da base se fizesse isso? 


Certamente. Mas ganharia o mais importante, que é o apoio popular. É preciso ter coragem.



Uma derrota em 2018 poderia fortalecer a mobilização dos movimentos sociais, na oposição? 


Seria trágica uma volta para a oposição. Voltaríamos a uma política que aprofunda a desigualdade social, que enxerga o investimento social como um gasto a ser contido. Voltaríamos à total valorização dos rentistas e do capital especulativo, a uma visão que reforça o desmatamento e a expansão do latifúndio. Não quero isso para o Brasil.



Mas o governo manteve essas práticas. O que mudou? 


Este governo fez coisas boas, como a soberania nacional, o distanciamento das nações metropolitanas. Fora D. Pedro II, nenhum governante do país tinha pisado no mundo árabe. Lula foi o primeiro. Essa independência conquistada pelo PT tem que ser preservada. Nisso, a diplomacia brasileira é exemplar. Hoje, é respeitada no mundo por sua autonomia. Não é subserviente a nenhum esquema de aliança que os EUA propõem, como a Alca, que, felizmente, fracassou.



As lideranças do PT estão envelhecidas. Um retorno às bases não passa por uma renovação dos quadros?


Isso é importante. Paradoxalmente, nestes 12 anos, o PT despolitizou a nação, quando era um partido do qual se esperava um amplo trabalho de politização, principalmente das bases populares e dos mais jovens. Uma série de políticas sociais foram colocadas em prática, mas sem o complemento de trazer uma educação política para os beneficiários dos programas. Com isso, hoje, nós temos uma nação e um partido sem lideranças. As lideranças do PT se queimaram politicamente e o partido não tem novos quadros porque não fez o dever de casa de reproduzir suas bases, como havia nos anos 80 e 90. Quando você ia à periferia de São Paulo, encontrava, em todos os bairros, um núcleo do partido e pessoas orgulhosas disso. Tudo isso desapareceu. O partido ficou de salto alto, e muitos desses líderes populares, por meio de suas carreiras políticas, descolaram-se da base popular. Mudaram de classe social, com casa na praia, sítio, fazenda etc. São raros os que ainda vão para a periferia no fim de semana para fazer política, como o Paulo Teixeira, o Molon e o Vicentinho.


Há espaço para um novo partido de esquerda?


Hoje, o Psol desponta como um novo partido, também com suas limitações e dificuldades. Mas não vejo necessidade ou condições para se criar outra legenda. 


O ambiente pode ficar favorável para a direita em 2018?


Sem dúvida. Ainda mais considerando que as pessoas sabem contra o que querem protestar, mas não o que querem propor. Nem a direita, nem a esquerda, nem a oposição, nem a situação têm visão estratégica de qual é o projeto necessário ao Brasil.


O sr. conversou recentemente sobre essas preocupações com Fidel Castro no seu último encontro, em Cuba? 


Sim. Quando ele me pergunta sobre a situação do Brasil, eu a externo, como faço nos artigos que escrevo. Tanto ele quanto o irmão Raúl são muito árduos na diplomacia. Ele escuta e anota, mas não se posiciona, não quer correr o risco de eu ou outra pessoa sairmos dizendo se ele concorda ou discorda. Não quer interferir. Mas continua mostrando um interesse grande por nossa realidade. Até porque, hoje, o Brasil é o terceiro ou quarto parceiro de Cuba. O primeiro é a China, o segundo a Venezuela, e o terceiro lugar fica entre Brasil e Rússia.



Fidel está bem de saúde?


Muito bem. Como ele disse, “para o azar dos meus inimigos, eu continuo vivo”. Está magrinho, mas com a mesma lucidez de quando o conheci, em 1980. Muito interessado em toda a conjuntura mundial. E anotando tudo o que a gente fala, como um bom aluno jesuíta. Sempre que você o vê numa foto, tem um bloco e uma caneta na frente.


Desta vez a aproximação com os EUA vai marchar mesmo? 


Vai, porque a questão do bloqueio não deu certo, como o próprio Obama declarou, no dia 17 de dezembro. Obama reconheceu o fracasso e os cubanos, inteligentemente, não quiseram tripudiar em cima dessa frase. Eu diria que é uma equivalência, em termos virtuais, da derrota imposta pelos vietnamitas na Guerra do Vietnã. Após 53 anos de bloqueio, o presidente dos EUA veio reconhecer, em público, que não funcionou. O país resistiu, sobreviveu, a duras penas, e agora os EUA têm de mudar em relação a isso.



O sr. acha que o Brasil tem forças para sair da crise?


Acho que sim, porque o país é muito criativo. O Brasil sempre passa por muitas crises e consegue dar a volta por cima. Não sei dizer, hoje, quando e como, mas creio que sim. É um fôlego muito grande, imagina-se que o PIB real deste país, que hoje beira os R$ 4 trilhões, tenha sua equivalência no PIB paralelo. É um país muito forte. Agora, isso vai ter um custo social muito grande, por essa questão da volta da inflação, do aumento do dólar, da China reduzindo as importações do Brasil, outro erro que se cometeu nesses anos. Como no Império, somos um país que depende de suas exportações agrícolas. Isso também é uma falha muito grande. Pedro Vaz de Caminha dizia que, aqui, “se plantando, dá”, mas mesmo não se plantando, dá. Porque onde a produção não é cultivável, é extratível, como na Amazônia. Então, não se justifica o Brasil ter qualquer dependência do mercado externo.


Mas o governo tem que ajudar...


Exatamente, o que está faltando é isso. Quando Deus criou a América Latina, os anjos se queixaram, porque havia um país com dimensões continentais. Eles até propuseram, no sindicato angélico, que fosse retalhado em vários pequenos países, proporcionais aos demais. Mas Javé disse a eles: “Esperem só para ver que tipo de políticos aquela gente vai eleger”. Porque, fora isso, a gente vive em um paraíso.