quarta-feira, 2 de abril de 2014

A verdade é dura: a grande imprensa finge que faz autocrítica, mas ainda justifica a ditadura

Por Marco M. Pestana

“Você pagou com traição /
A quem sempre lhe deu a mão…”
Jorge Aragão, Vou festejar (1978)

A onipresença do slogan “A verdade é dura, a rede Globo apoiou a ditadura” nas mobilizações iniciadas em junho de 2013 levou a que, em 31 de agosto do mesmo ano, o jornal O Globo publicasse um editorial em que fazia a autocrítica (bastante limitada, diga-se de passagem) em relação ao seu apoio ao golpe que instalou a ditadura empresarial-militar em 1964. Já em 2014, a proximidade do aniversário de 50 anos daquele golpe levou dois outros veículos da grande imprensa de mercado a exercitarem seu mea culpa. Em 30 de março, foi publicado o editoral da Folha de São Paulo (que, em editorial de 17/02/2009, tratara a ditadura no Brasil como “ditabranda”) e, no dia seguinte, O Estado de São Paulo trilhou o mesmo caminho.
O Estado de São Paulo apresenta os golpistas como “democratas”, em abril de 1964


Nos blogs, redes sociais, periódicos virtuais já é possível encontrar um significativo apanhado de críticas às posições sustentadas por esses dois textos mais recentes. Em função disso, não pretendo, nesse texto, fazer uma avaliação pormenorizada do festival de bobagens dos editoriais. Ficarei, então, limitado a ressaltar alguns dos elementos estruturantes de suas argumentações – quase todos, partilhados por ambos, a despeito dos matizes de suas abordagens –, finalizando pela análise de um ponto específico apresentado pelo texto daFolha.
Grosso modo, é possível afirmar que as revisões de seus apoios ao golpe e à ditadura alicerçam-se em dois pilares comuns: em primeiro lugar, aparece a ideia de que, em 1964, a democracia encontrava-se ameaçada tanto pela direita, quanto pela esquerda; e, em segundo lugar, há a apresentação da complexidade dos embates daquela conjuntura histórica como justificadora das posturas adotadas pelos jornais. Se a primeira posição introduz certa leniência para com os golpistas e culpabiliza – ao menos, parcialmente – os golpeados, a segunda, indubitavelmente, subverte o próprio propósito de autocrítica que, supostamente, deveria animar os textos em questão. Em linhas gerais, é como se a Folha e o Estadãodissessem: “Estávamos errados, mas, naquele momento, muitos estiveram e não era fácil perceber isso. Devemos, então, ser absolutamente perdoados”.
O problema fica ainda maior na medida em que nenhum dos dois editoriais para por aí. O doEstadão, por exemplo, tenta se justificar por meio da construção retórica de uma diferenciação entre, de um lado, o intervalo entre o golpe propriamente dito e o Ato Institucional No 1 (AI-1) e, de outro, o momento iniciado pelo AI-2, em 27 de outubro de 1965. Para o jornal, enquanto o primeiro período teria tomado “medidas excepcionais e transitórias, destinadas a recolocar o país no caminho democrático”, o segundo teria desviado o “movimento de seu rumo”, pelo afastamento dos elementos civis e pelo predomínio de sua faceta militar. Além de falsificar grosseiramente fatos históricos (como a presença, respectivamente, de 9 e 11 ministros civis nos governos de Costa e Silva e Médici, que contaram com 13 e 15 pastas), o texto prima pelo ocultamento do sentido do processo histórico inaugurado em 1964.
A Folha de São Paulo também legitimou o golpe

O texto da Folha, por sua vez, ainda que de forma um pouco menos tosca, busca lançar véu similar sobre a história do período. Nele, por exemplo, são apresentadas as “realizações de cunho econômico e estrutural” da ditadura, com destaque para a elevada média de crescimento do PIB alcançada naqueles anos. Entretanto, ainda que aponte a ocorrência de um aumento da desigualdade social, nada fala acerca da brutal expansão da taxa de exploração dos trabalhadores que sustentou o “milagre econômico”, ou mesmo do arrocho salarial que constituiu sua expressão monetária. Essa intenção mistificadora é, no entanto, traída pelo próprio texto, em uma passagem pouco ressaltada pelos comentários que tenho visto:
“Sob um aspecto importante, 1964 não marca uma ruptura, mas o prosseguimento de um rumo anterior. Os governos militares consolidaram a política de substituição de importações, via proteção tarifária, que vinha sendo a principal alavanca da industrialização induzida pelo Estado e que permitiu, nos anos 1970, instalar a indústria pesada no país”.
Nesse singelo extrato, fica confessado para o leitor atento o real intento dos golpistas – e dos jornais que os apoiaram – na construção do regime ditatorial: instituir as garantias políticas para o aprofundamento do desenvolvimento das relações capitalistas nas condições históricas da periferia do sistema em meados do século XX. Aos olhos de qualquer analista sério, as reformas de base propostas pelo governo de João Goulart apresentam um caráter inequivocamente compatível com as estruturas básicas do capitalismo (a própria reforma agrária, um dos temas mais polêmicos naquela conjuntura, fora realizada em países da Europa ocidental e nos Estados Unidos). Entretanto, no pré-1964, o processo de mobilização em torno de tais reformas corporificava a ameaça aos horizontes da acumulação capitalista nos quadros da inserção subordinada do Brasil na dinâmica capitalista internacional. Por meio dessa mobilização, colocava-se a possibilidade do avanço organizativo das classes subalternas gerarem um quadro que lhes permitisse requisitar parcelas crescentes da riqueza produzida dentro das fronteiras nacionais. Assim, espremidas entre as pressões das burguesias dos países-chave do sistema capitalista mundial a enviarem para o estrangeiro parcelas significativas dos lucros auferidos no país e as mobilizações dos trabalhadores, as classes dominantes brasileiras optaram por construir um regime político que permitisse a plena integração àquele sistema, assentando-o na brutal repressão às lideranças, organizações e movimentos dos subalternizados do país. O golpe e o regime assumiam, portanto, um inequívoco caráter de classe, expressando, sob a forma de uma ditadura empresarial-militar, a dominação política e a exploração econômica dos trabalhadores e camponeses pela burguesia e pelos latifundiários.
Colocada a questão em perspectiva histórica, fica descartada, por absurda, qualquer suposição de descontinuidade radical entre as diferentes fases do regime ditatorial, posto que todas elas caracterizaram-se, ainda que de formas diversas, pela combinação de incentivo aos empreendimentos capitalistas e limitação das possibilidades de reivindicação e expressão política dos trabalhadores. Infelizmente, os diversos malabarismos apresentados pelos dois editoriais aqui analisados para encobrir esse processo histórico têm encontrado certa repercussão na opinião pública por sua confluência com posições adotadas, especialmente na última década, pela parcela hegemônica na historiografia acadêmica brasileira sobre o golpe e a ditadura. Fração essa que, não por acaso, tem encontrado calorosa acolhida nas páginas de jornais como O GloboFolha de São Paulo e Estado de São Paulo, aos quais frequentemente concedem entrevistas e subsídios para reportagens.
Otávio Frias, proprietário da Folha, em encontro com Castello Branco

Feitas essas breves considerações acerca das posições contidas nos editorias da Folha e do Estadão, talvez seja oportuno encerrar esse texto retomando o sentido da autocrítica a que ambos se propuseram. Quanto a isso, cumpre observar que, assim como diversas outras empresas capitalistas, os dois veículos da imprensa em questão beneficiaram-se largamente – ampliando suas margens de lucro, sendo agraciadas por políticas públicas convergentes com seus interesses, etc – do regime ditatorial que ajudaram a instituir e ao qual hipotecaram seu apoio por longos anos. Em certo sentido, portanto, o repúdio público à ditadura poderia ser encarado como sinal de sua ingratidão em relação àqueles que sempre lhes deram a mão.
Por outro lado, as considerações presentes nos dois textos editoriais acerca da necessidade de se compreender a complexidade histórica do momento em que apoiaram o golpe e o regime subsequente evidenciam o fato de que os trunfos não são descartados com tanta facilidade pelos jogadores mais tarimbados. Por mais que pareça evidente que o atual regime democrático não apresenta brechas para o questionamento do sistema social capitalista por parte das classes subalternas – inclusive por conta da total capitulação do PT a esse sistema –, o ciclo de lutas iniciado em junho de 2013 recoloca, mesmo que de forma ainda remota, a possibilidade do processo histórico caminhar nesse sentido. Diante desse quadro, deve ter parecido prudente aos editorialistas dos grandes jornais de mercado deixar em aberto a possibilidade de, em um eventual momento de dificuldades, sacar da manga a carta da complexidade histórica para apoiar soluções de força, quer sejam elas corporificadas por intervenções militares, quer assumam a forma do aprofundamento do desenvolvimento de instrumentos de exceção no bojo do próprio regime democrático.

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