segunda-feira, 10 de março de 2014

Revolução à sombra

As Luzes não cegaram o humanismo de Goya
ENTREVISTA TZVETAN TODOROV


LUCAS NEVES

Em livro recém-lançado, Tzvetan Todorov avalia como a obra do espanhol Francisco de Goya (1746-1828) é fruto do Iluminismo, mas também seu transformador. "Ele é o pintor mais engajado na representação de tudo aquilo que nos constitui", diz o intelectual franco-búlgaro em entrevista à "Ilustríssima", em Paris.

Tela "Saturno" (1820-23), de Goya


"O fato de os americanos/Desrespeitarem os direitos humanos/Em solo cubano/É por demais forte simbolicamente/Para eu não me abalar." A letra de "A Base de Guantánamo", de Caetano Veloso, escolhida pelo filósofo, crítico e historiador franco-búlgaro Tzvetan Todorov, 75, para fechar um programa de rádio recente com suas canções prediletas, ilustra o norte de seus estudos: o humanismo, suas desfigurações e sua renitência no decorrer do século 20.

Dos "gulagui" soviéticos e campos de concentração nazistas às "guerras humanitárias" no Oriente Médio, o espectro percorrido pelo pensador é elástico. No recém-lançado "Goya à Sombra das Luzes" [trad. Joana Angélica d'Avila Melo, ed. Companhia das Letras, R$ 49,50, 288 págs.], ele segue na trilha dos ideais progressistas do Iluminismo europeu do século 18, mas se embrenha em vereda menos castigada pelo sol a pino da razão que cegou o espírito da época.

Ao reconstituir a trajetória do pintor espanhol do título, Todorov expõe os limites do pensamento dito esclarecido e mostra como sua instrumentalização pode apagar as tais Luzes, instaurando a longa noite da guerra.

O autor retrata o Goya da vida pública como um arlequim, servidor de tantos amos quantos lhe garantissem a subsistência. Já o artista da esfera privada, que guardou para si o grosso de sua produção, anuncia-se comentarista social agudo, atento aos perigos da apropriação enviesada das bandeiras democrática e libertária --como na invasão de uma Espanha ainda feudal por tropas napoleônicas "iluminadas", no começo do século 19, que inspira as gravuras da série "Desastres da Guerra".

A tradução artística desse pensamento, sustenta o historiador, é inovadora. Saem a perspectiva, a imitação do real e a busca da grande beleza; entram massas cromáticas, formas indiferenciadas e uma iconografia prenhe de demônios e pulsões internas libertadas.

Nessa "identidade dupla" de Goya, o estudioso enxerga um "espírito aparentado" ao dele. Em sua Bulgária natal, no fim dos anos 1950, Todorov escolheu um objeto de pesquisa que o livraria da patrulha stalinista: o formalismo, escola crítica (c. 1915-30) que entendia a arte como procedimento e se dedicava a esquadrinhar seus mecanismos internos. O esforço de análise ali recaía, portanto, sobre a estrutura, o esqueleto dos textos, jamais sobre o discurso --este passível da "contaminação" doutrinária que o acadêmico abominava.

Primeira obra dessa fase, "Teoria da Literatura - Textos dos Formalistas Russos" [trad. Roberto Leal Ferreira, ed. Unesp, R$ 52, 368 págs.] acaba de sair no Brasil. A difusão desses escritos na França dos anos 1960 ajudou a impulsionar a vertente estruturalista dos estudos literários, mais tarde descrita como míope por Todorov, justamente um de seus artífices.

Na entrevista a seguir, concedida em Paris, o filósofo fala sobre os dois livros, sobre o imperativo de recuperar o aspecto lúdico da literatura e o risco das intervenções militares cheias de boas intenções, prefigurado nos desenhos, gravuras e telas de Goya.

Folha - De onde vem o seu interesse pela obra de Goya?

Tzvetan Todorov - O pintor está no cruzamento de dois dos meus maiores interesses. O primeiro é o pensamento do Iluminismo, que, com todos os seus defeitos, é a pedra fundamental da modernidade. Ora, Goya viveu durante a segunda fase do Iluminismo. Minha segunda grande paixão é a pintura, sobretudo numa perspectiva de integrá-la à história do pensamento, e não encará-la como mero jogo formal. Não pude evitar esse cruzamento. Busquei ver em que medida o artista adotou as linhas mestras do ideário iluminista mas também o quanto o transformou.

Além disso, ele me pareceu ser um espírito aparentado ao meu. Reconheço-me nessa cisão da obra entre uma parcela visível e outra subterrânea, como se emanando de duas pessoas. Isso me faz pensar no que vivi até os 24 anos, morando em um país [governado por um regime] totalitário, em que com frequência se estava condenado a uma vida dupla.

Não se deve esperar da obra de um artista certa coesão que a enfeixe?

O que devemos exigir da arte não é que esteja alinhada com um dogma unívoco, mas que seja verdadeira. Admiramos pintores e romancistas do passado muitas vezes sem conhecer suas convicções políticas. Quando deparamos com suas obras, experimentamos um sentimento de revelação de uma verdade que até ali nunca fora enunciada. Goya teve essa força. O que é impressionante na trajetória dele é que se tratava de um cortesão, do pintor do rei da Espanha. Essa submissão exterior lhe permitiu cultivar uma liberdade interior que nenhum outro pintor da época teve. O homem Goya não foi um herói, é claro. Mas vejamos a série de gravuras "Desastres da Guerra": é como se nos falasse do Vietnã ou do Iraque. Ninguém antes dele teve tal coragem de nos mostrar o que a guerra produz.

Mas ele não publicou essas gravuras. Simplesmente as endereçou à humanidade. Nesse caso, só temos a agradecer o fato de ele não ter sido um tipo irascível, contestador da ordem e por ter deixado essa obra excepcional. É verdade que isso cria um problema de fundo --será o autor digno de figurar ao lado de suas criações?--, mas é preciso analisar [a postura paradoxal] detidamente e perceber que, tivesse ele agido de outra forma, não teria conseguido construir esse corpo de trabalhos. É algo da ordem da estratégia.

O sr. diz que traços do Goya maiúsculo já estavam presentes na primeira fase de sua carreira, mas que a surdez (1792) e uma grande desilusão amorosa (1797) foram pontos de inflexão. Sem isso, teríamos conhecido o grande Goya?

Acho que não. Ele teria sido um pintor muito bom, mas não o gênio que foi. É a partir dessa ruptura que começa a fazer coisas que não se parecem com nada da época. Essa enfermidade o encoraja a não mais levar em conta qualquer regra da vida pública que o rodeia no que diz respeito à sua arte. E ele tinha a consciência de estar criando algo fora do comum. Tanto que, em 1794, enviou à Academia de San Fernando, em Madri, 11 pequenos quadros com a observação de que eram "obras concluídas", não esboços, apesar do que a estética reinante levasse a crer. Foi o primeiro a cometer essa ousadia.
Goya faz circular seus trabalhos entre amigos e só não os divulga de forma mais ampla por não querer vê-los condenados pelos "juízes" oficiais. Sabe que infringe todas as normas artísticas que existiram até ali. Isso vai culminar no ciclo das Pinturas Negras [feitas diretamente nas paredes da casa para a qual se muda em 1819, na última década de vida], que ele não mostrará a absolutamente ninguém. É como se Michelangelo tivesse pintado os afrescos do teto da Capela Sistina não para o papa, mas em sua casa, e depois tivesse trancado o lugar e ido morar em outra cidade.

Em "A Literatura em Perigo" (Difel, 2009), o sr. situa a ameaça sugerida pelo título em certa vertente hipersubjetiva, supostamente fechada em si mesma, da produção contemporânea. Ora, não foi um recolhimento assim que catapultou Goya à melhor forma?

Esse recolhimento, no caso do pintor, é só existencial, não se reflete na obra. Ela continua aberta ao mundo. Nos compreendemos melhor contemplando Goya e outros grandes, tanto quanto lendo clássicos. Em "A Literatura...", lamentava que escritores contemporâneos --sobretudo franceses-- tivessem renunciado à vocação da arte de se apropriar dos grandes temas que agitam desde sempre nossos corações: as paixões humanas, o lugar de cada um no mundo. Lastimava que tivessem preferido jogos formais, um narcisismo estreito, às vezes até um niilismo que recusa qualquer inteligibilidade do mundo.

Comparado a isso, Goya é um jornalista, tão sensível que é ao mundo a seu redor, à vida privada, aos jogos cruéis que homens e mulheres disputam entre si mas também à guerra e à nossa fantasia, traduzida em cenas de magia e feitiçaria. Ele é o pintor mais engajado na representação de tudo aquilo que nos constitui. Está, portanto, no campo oposto ao desses escritores aos quais me refiro. Mas isso não quer dizer que eles devam ir para a rua se manifestar. Podem fazê-lo em seus sótãos diante de seus manuscritos, como Kafka, ou jamais exibindo uma parte de sua produção, como o próprio Goya.

"Teoria da Literatura", de 1965, também acaba de sair no Brasil. Desde então, sua avaliação sobre a abordagem formalista/estruturalista mudou substancialmente...

Não me arrependo, porque havia nos autores dessa antologia crítica um forte senso de renovação. Até a época deles (1915-30), todo um aspecto das obras literárias tinha passado em branco: a maneira como o texto é construído, desde suas metáforas e ironias até a elaboração da narrativa. O problema para mim nasceu quando se decidiu que era preciso substituir qualquer outra abordagem por essa. Esses recortes deveriam ter, isso sim, um efeito cumulativo.

O que exatamente fez com que se afastasse do estruturalismo?

Foram dois episódios. Em 1973, virei cidadão francês. No ano seguinte, nasceu o meu primeiro filho. Isso me empurrou para temas sociais, históricos e políticos. Eu tinha mudado. Antes, me dividia entre o homem que era e a profissão que exercia, um pouco como Goya. Dali em diante, não queria mais que houvesse esse abismo. Minhas preocupações pessoais deveriam ressoar no meu trabalho.

O sr. fala sempre da necessidade de revalorizar o prazer da leitura pura e simples, longe de teorias e conceitos. Como convencer um jovem de hoje a ler em um mundo cheio de ofertas de distração que demandam menos esforço intelectual?

A literatura é algo que se aprende. É preciso descobri-la por obras mais fáceis. Pode ser "Harry Potter", um romance policial. Acho que o ser humano precisaria ser lobotomizado para perder o interesse por um enriquecimento interior como o que a leitura proporciona.

Em "Os Inimigos Íntimos da Democracia" (Companhia das Letras, 2012), o sr. critica o uso do discurso humanista para justificar intervenções militares em países estrangeiros. Quando é que a comunidade internacional deve agir?

Não acho que o humanismo implique um acionamento do Exército para impor valores defendidos por este ou aquele país. É por isso que me oponho às ditas "guerras humanitárias": parece-me que o antídoto é sempre mais danoso do que o mal que se pretendia combater. Na Síria, houve um chamado à intervenção equivocado. Nada garante que os sunitas extremistas [que lutam contra a ditadura de Bashar al-Assad] agiriam mais conformemente aos interesses ocidentais --ou mesmo aos da população local-- se chegassem ao poder. A única política razoável ali é a de impor um cessar-fogo.

A Ucrânia é outro exemplo. Apoiar um lado pode detonar uma guerra civil. As forças em conflito se dividem em mais aspectos do que a fidelidade à Rússia versus o aceno à Europa. Essa é uma leitura grosseira. Há um acirramento do nacionalismo ucraniano, um fortalecimento de milícias influenciadas pela extrema-direita. Isso não quer dizer que se deva defender o presidente [deposto] Viktor Yanukovich, mas sim que as situações políticas não se prestam a tratamentos sumários e maniqueístas.

O senhor acompanhou os protestos de rua no Brasil em 2013?

De longe. Elas me chamaram a atenção porque se inscrevem num movimento global de contestação dos governos menos pela via dos partidos de oposição do que pela saída às ruas --o que indica que as legendas já não dão forma às aspirações de diferentes grupos sociais. É preciso esperar que o resultado seja uma transformação da representação política. Torçamos para que um novo modelo se apresente, para que se criem formas de ação política.

    FONTE: Folha de São Paulo, 9 de março de 2014. "Caderno Ilustríssima".

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