domingo, 12 de janeiro de 2014

“Nos falta um Brasil com visão continental”

Segundo Atilio Boron, a liderança não significa atropelar os demais países, mas criar um consenso para articular conjuntamente um projeto

Diego Diehl
de Buenos Aires (Argentina)

Poucos cientistas sociais acumulam uma compreensão tão profunda sobre os processos políticos em curso no continente latino-americano quanto Atilio Boron. Professor de Teoria Política e Social na Faculdade de Ciências Sociais da Universidade de Buenos Aires (UBA), o argentino tem dedicado anos de investigação ao papel que os países da região têm desempenhado no sistema internacional.

Seu mais recente livro descreve o lugar da América Latina na geopolítica do imperialismo, cada vez mais crucial na estratégia de sobrevivência do capitalismo.

É onde está metade da biodiversidade do planeta, incluindo 45% do volume de água doce.

Nesta entrevista exclusiva ao Brasil de Fato, Boron atendeu à reportagem na sede do Centro Cultural de la Cooperación Floreal Gorini, onde fi ca seu escritório na capital portenha. Destacou que o futuro da região depende da liderança efetiva do Brasil.

“O país precisa entender seu papel de liderança latino-americana, especialmente a partir da União das Nações Sul-americanas (UNASUL). Se não fi zer, pagará um preço muito caro”, aponta. O sociólogo explica que o contexto mundial põe em risco os recursos naturais brasileiros e menciona as 23 bases militares dos EUA que cercam o país.

Boron também analisou a dimensão dos protestos sociais ocorridos em junho passado no Brasil. “O que houve tem mais a ver com as desigualdades econômicas e sociais, que persistem muito grandes mesmo após quase 30 anos de democracia”.

Para o entrevistado, não há dúvida da legitimidade das mobilizações, protagonizadas pela juventude e movimentos populares. Porém, ele faz um alerta: “o protesto social sem um projeto político está condenado à derrota”. A seguir, a entrevista completa:

Brasil de Fato – Há algum paralelo que possamos fazer entre as mobilizações de junho no Brasil e os processos que ocorreram na chamada da “Primavera Árabe”, os “Indignados” na Espanha, ou os “Occupy” nos EUA? Até que ponto essas comparações são corretas considerando o contexto brasileiro e latino-americano?

Atilio Boron – Em primeiro lugar, me parece que há um clima de época no qual estas manifestações populares contra governos capitalistas estão se difundindo por todo o mundo. Há uma crise capitalista muito forte, e ela é sentida em determinados países de forma mais intensa que em outros. Porém, me parece que os protestos no Brasil têm mais a ver com os “Indignados” e os “Occupy”, já que, no caso da Primavera Árabe, um elemento fundamental foi o súbito aumento do preço dos alimentos, ademais de se tratar de países que viviam sob ditaduras. O que houve no Brasil tem mais a ver com as desigualdades econômicas e sociais, que persistem muito grandes mesmo após quase 30 anos de democracia. O fato é que o Brasil é um dos países mais desiguais do mundo, e essa situação se agrava com o que a Ciência Política chama de “políticas de prestígio”, a partir do impulso que o governo brasileiro tem dado a megaeventos como a Copa do Mundo e as Olimpíadas.

Ademais, há uma atitude muito ingênua por parte do governo brasileiro, de achar que esses megaeventos são o passaporte para a condição de país desenvolvido, que ignora, afinal de contas, outros exemplos históricos, como é o caso do México, que já teve Copa do Mundo e Olimpíadas e atualmente passa por uma situação desastrosa. Na verdade, essas políticas de “pão e circo” exacerbam as tensões sociais, os conflitos e o ressentimento daqueles que passam necessidades e que, ao mesmo tempo, veem o Estado destinando volumes gigantescos de recursos para atividades que não vão gerar uma melhoria concreta em suas vidas. Pelo contrário, hoje em dia, os preços no Brasil têm subido muito e parte disso já em função do Mundial – que não faz grande diferença para os turistas que estarão na Copa do Mundo –, mas faz para a população mais pobre.

Então, você tem um padrão distributivo muito desigual, uma indiferença do governo em relação a esse tema e um desequilíbrio orçamentário que apenas reforça esse aspecto, já que o programa Bolsa Família equivale a apenas um mês do pagamento de juros da dívida pública brasileira. Tudo isso acaba reforçando as tensões de uma sociedade frustrada por um projeto político aparentemente reformista, mas que não avança em temas como a reforma agrária, a carestia, o péssimo transporte público. E quando há um aumento da remuneração do trabalhador de dois para três salários mínimos, ele não deixa de ser pobre. Diante de tudo isso, vendo um governo pródigo injetando dinheiro em obras faraônicas, em estádios de futebol em vez de escolas e hospitais, creio que essa foi a faísca para a explosão social que ocorreu.

Ademais, esse cenário de fundo que propicia as mobilizações já existia há muito tempo, mas foi de alguma forma contido pela direita brasileira, uma das mais inteligentes do continente, que havia ficado muito assustada com os incidentes argentinos de dezembro de 2001. Esse medo lhes levou a permitir a chegada de Lula à presidência em 2002, e tenho para mim que se isso não tivesse  passado na Argentina, as elites brasileiras não permitiriam que Lula chegasse ao governo. E creio que é isso que os setores mais lúcidos da elite chilena estão fazendo neste momento, resgatando Bachelet para conter os protestos sociais. Mas essa inteligência tem um limite, e esse limite foi expressado pelas manifestações de junho no Brasil. Portanto, esse não foi um movimento fascista, mas um movimento popular, da juventude, de gente de baixo, desorganizada, sem experiência política, que não sabia o que fazer, que tinha medo de colocar projetos políticos e queria manter-se apenas como protesto social. O problema é que o protesto social sem um projeto político está condenado à derrota.

Foi, portanto, uma erupção. Agora, as coisas se acalmaram, mas os problemas não foram resolvidos, o que significa que muito provavelmente teremos um novo ciclo de grandes mobilizações no período do Mundial, quando as pessoas deverão sentir na própria pele os diversos problemas que vão passar.

Diante desses protestos, os movimentos estão propondo a realização de uma Assembleia Constituinte exclusiva e soberana para fazer uma reforma política. Que parece ao senhor essa proposta e que impacto ela poderia ter na conjuntura brasileira e latinoamericana?

Para mim, é muito interessante que se construa uma Assembleia Constituinte. O Brasil precisa dessas modificações na Constituição. Mas a dúvida é se essas mudanças virão sem processos de mobilização popular. Creio que sem essa pressão social dificilmente os meios institucionais farão grandes mudanças, porém há que ser uma pressão organizada, e não anárquica e dispersa, e que viabilize uma convocatória sem restrições, para não cair na trama que os setores conservadores impuseram, por exemplo, na Constituinte argentina de 1994, quando não se aceitou discutir uma série de “pilares fundamentais” do liberalismo clássico. Há que impor uma agenda desde os movimentos sociais, sem aceitar qualquer tipo de cooptação do governo nessa definição. Minha hipótese é que qualquer governo, de qualquer espectro político que seja, sem pressão social, tende a imprimir políticas de direita, pois acaba sendo tomado pela burocracia interna. Portanto, a reforma política necessária apenas sairá com forte pressão social e desde baixo.

Com a reforma política o senhor crê que seria possível destravar as chamadas reformas estruturais, que não foram feitas em 30 anos de democracia no Brasil?

Veja, essa Constituinte geraria uma nova Constituição, que ampliaria a democracia tal como se deu no caso da Venezuela, onde há eleições praticamente todos os anos. Creio que se algo assim ocorre no Brasil, isso seria muito favorável.  Mas há que discutir se a esquerda teria condições de ganhar as eleições, e depois implementar um governo que consiga fazer as reformas necessárias.

Para isso é que as mudanças constitucionais são necessárias, tal como se deu na Venezuela, Bolívia ou Equador, onde há plebiscitos e o mandatário pode passar por referendos revogatórios. No Equador, por exemplo, os programas de governo dos candidatos, quando eleitos, são tomados como obrigatórios; e se não são cumpridos, abre-se um processo penal contra o governante. No caso do Brasil, esse tipo de medida poderia ser feito apenas por lei, porém é evidente que com o atual Congresso uma medida assim não seria aceita.

Então, o maior problema do Brasil hoje é a enorme dificuldade em mobilizar e organizar a população, favorecido pela distância territorial, pela debilidade das organizações etc. Creio, porém, que as coisas não vão seguir por muito tempo assim, e que as organizações vão reagir no próximo período. Afinal de contas, não é possível que um país como o Brasil, com enormes riquezas naturais, com a quantidade de multimilionários, seja o país mais desigual da América Latina! É um absurdo essa situação! E o que as elites tratam de fazer é promover o isolamento do Brasil em relação ao resto da América Latina (não há nenhum canal de televisão de outros países da América Latina que passe no Brasil). Porém, esta muralha está sendo rompida aos poucos, a partir de diversos meios de comunicação – especialmente a internet, utilizada em grande escala pela juventude brasileira. Tenho grande esperança nessa juventude, que, inclusive na periferia, tem ampliado o acesso a esses diferentes meios de comunicação, e isso é perigosíssimo para as classes dominantes de hoje, assim o era a alfabetização do trabalhador no início do século XX. Há, ainda, que garantir que esses processos sejam bem organizados, para não cair na violência, que, no caso da polícia brasileira, levaria a uma repressão brutal.

Qual a sua avaliação sobre as políticas neodesenvolvimentistas brasileiras hoje? O senhor crê que elas podem levar o país à condição de potência mundial?

Penso que o Brasil tem potencialidades extraordinárias. Porém, transformá-las em poder real não é algo fácil. Não se trata de um processo linear e nem depende simplesmente de discursos. Para ser potência, há que ter um povo educado; para ser potência, há que ter um povo saudável; para ser potência, há que ter uma sociedade justa, que não esteja tragada por grandes tensões e contradições sociais; para ser potência há que ter autonomia e exercer soberania real. E quando vemos a situação a partir destes critérios, vemos que efetivamente o grau de autonomia do Brasil é ainda muito fraco.

Exemplo disso é que o Brasil há muito tempo não renova sua força aérea, que é um elemento fundamental para a defesa territorial. Há, ainda, setores das Forças Armadas e do establishment que defendem a compra de aviões dos EUA, que são na verdade o maior agressor potencial do Brasil, já que possui 23 bases militantes ao redor do país, sendo duas no Oceano Atlântico, sendo que de uma delas se pode enviar frotas marítimas que, em três dias, chegariam à costa de Fortaleza, e a outra se encontra nas Ilhas Malvinas, em parceria com os britânicos. E, entre essas duas bases marítimas, há toda a área do Pré-Sal! Então, há que ser tonto para não ver que a única potencial agressão que pode sofrer o Brasil vem dos EUA, logo este é o único país do qual o Brasil não pode comprar equipamentos bélicos! E, para que não permitam que os EUA se apropriem da Amazônia (como é o que se pretende fazer), há que ter equipamentos de vigilância adequados para isso, que nesse momento só podem ser fornecidos por dois outros países: Rússia e China. Então, se se compra esses aviões de última geração dos EUA, com seus softwares de combate de última geração que dependem de atualizações a cada quatro meses, o controle estadunidense torna-se absoluto.
Coloca-se ainda como alternativa a compra de caças franceses, no entanto Hollande está completamente envolvido com os EUA nas agressões à Síria. Quando houver um conflito de interesses entre EUA e Brasil, certamente os franceses irão boicotar os brasileiros.

E esse é um problema para o Brasil, mas também para toda a América Latina, pois o Brasil posto de joelhos pelo imperialismo é uma desgraça para todo o continente. Como os demais países poderão se defender se o Brasil não puder? Se o Brasil se desindustrializou tanto como nos últimos anos? Se o Brasil se dedica a fabricar agrocombustíveis a partir do acordo de Lula com Bush, ao invés de retomar sua vocação industrial? [Na última semana, o governo brasileiro confirmou a compra 36 caças Gripen, fabricados pela empresa Saab, da Suécia].

Outro problema é a visão do Brasil sozinho no mundo. O Brasil não tem condições de atuar sem parcerias. Apenas Índia e China poderiam atuar dessa forma. Quando Lula tentou imprimir uma política mais independente dos EUA, e quando o Brasil foi intervir junto com a Turquia nas negociações sobre o programa nuclear iraniano, foram completamente ignorados por Obama quando foram a Washington levar os resultados.

O Brasil tem, portanto, aspiração de ser potência, no entanto, o único modo de ser uma potência real é se pondo à cabeça de toda a América Latina. E isso é o que não se pode entender: se assumisse essa liderança, o Brasil teria um papel muito mais forte. A esperança de que o pré-sal possa ser uma salvação para o Brasil não está garantida e não é tão segura, já que há uma série de dificuldades na exploração dessa riqueza conforme diversos analistas têm mostrado. Portanto, é uma aposta bastante perigosa.

O Brasil precisa entender seu papel de liderança latino-americana, especialmente a partir da Unasul. Se não fazê-lo, pagará um preço muito caro. Kissinger já dizia há 20 anos (e os diplomatas brasileiros ou têm má memória ou não querem entender isso) que os EUA nunca permitiriam o surgimento de um grande poder abaixo do Rio Bravo.

A única potência no continente apenas poderia ser os próprios EUA. E essa é a política dos EUA, ante a qual a única saída do Brasil é fomentar a integração sul-americana. Esse papel de liderança é do Brasil, e não haverá qualquer competição com outros países por isso, pois a todos interessa de que isso aconteça. Porém, na prática, o Brasil é como um irmão maior que não quer saber dos irmãos menores. Se fi zesse cargo deles, teria uma capacidade de pressão internacional infernal. Com a quantidade de recursos naturais, água, petróleo, alimentos etc, há todas as condições para isso.

Nos falta, portanto, um líder regional. Quem sempre teve isso claro foi Chávez, que incentivava que o Brasil assumisse a dianteira da Unasul e não o faz. Agora está nessa estupidez do tratado com a União Europeia, que irá arruinar ainda mais a indústria brasileira.

O Brasil tem que ser o motor industrial de toda América do Sul. Porque não há como competir com os chineses,  por uma série de fatores e por aspectos históricos (casos concretos em que os chineses passaram por cima das indústrias brasileiras). Mas, o Brasil pode criar um espaço na América Latina. O Brasil deve ser como uma Alemanha sul-americana, e outros países também terão indústria e outras atividades.

Nessa região há terras férteis, riquezas naturais, água, comida, ou seja, todas as condições para isso. Nos falta um Brasil com visão continental, que lamentavelmente não existe hoje, pois os dirigentes brasileiros têm uma visão paroquial, regional, que não entende como funciona o mundo, e que é humilhado pelo Império. O caso da espionagem dos EUA é uma humilhação para o Brasil. Está bem que Dilma não vá encontrar Obama, mas isso é pouco ainda perto do que há que fazer. Há que entender que se hoje está sendo humilhado, amanhã poderá estar sendo agredido pelos EUA. Então, a única forma de defesa do Brasil é uma forte união sulamericana e uma capacidade de diversificar seus laços e, sobretudo, armarse com gente confiável que não lhe vá privar das armas em momentos de conflito que vai surgir. Porque os EUA vão querer a água e o petróleo do Brasil, e se não lhes derem eles buscarão pela força se necessário. Para isso, estão as 23 bases militares preparadas.

Essa liderança brasileira não poderia ofuscar o papel que cumpre a Venezuela no continente hoje?

Certamente que não, pelo contrário. Chávez tinha isso muito claro, e a imagem do “irmão maior” é do próprio Chávez. A liderança não significa atropelar os demais países, mas criar um consenso para articular conjuntamente um projeto, que dirige de forma coletiva, sem estabelecer relações subimperialistas.

Mas isso depende de dirigentes competentes, esclarecidos e de esquerda, e com esta gente não se pode fazer, pois os atuais estão a serviço do capital transnacional, e nem mesmo do capital brasileiro. Mas outra classe de dirigentes poderia fazer. Claro que há setores nacionalistas reacionários em outros países que podem se ressentir, mas a maioria da população não vê isso como um problema.

As eventuais rivalidades que possam ocorrer têm mais a ver com o fato de que a Venezuela não trata de falar, mas de praticar a solidariedade internacional, como no caso da Petrocaribe, que fornece petróleo a diversos países a preços abaixo dos praticados no mercado. Enquanto isso, a Petrobras é uma empresa tradicional, como a Shell, Exxon etc. Portanto, que não tenham rivalidade com a Venezuela, mas que tratem de aprender com essa generosidade venezuelana, e também com a generosidade cubana. Os dirigentes brasileiros não tem sido generosos: como entender a imposição de bloqueios pelos brasileiros ao arroz do Uruguai? Quanto arroz o Uruguai poderia exportar para o Brasil? É um absurdo! Se alguém almeja o papel de liderança, deve saber fazer concessões. Senão se assume uma postura coercitiva.

Nossa esperança, portanto, é que o Brasil compreenda este papel, e reconheça em primeiro lugar que foi enganado de forma escandalosa pelos EUA. O Itamaraty acreditou na promessa de um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU, mas os estadunidenses não tem como garantir isso, já que os demais membros também terão que aceitar a proposta. Ademais, esse assento não é algo artificial, mas reflete as condições reais de força na política internacional, e hoje, o Brasil não tem peso na política internacional. Todos estes países são potências atômicas, têm grande grau de autodeterminação. A Índia e a China são potências atômicas, fazem o que querem. O Brasil não faz o que quer. Oxalá o Brasil assuma a liderança do processo da unidade latino-americana, e assim o futuro da América Latina será muito promissor. Porém, se não se der conta de quem é seu verdadeiro inimigo, de quem está aí para impedir que o Brasil seja uma verdadeira potência, então o futuro será muito duro para todos nós.

A luta brasileira é portanto uma luta latino-americana...

Sem dúvida. Nós necessitamos disso. Imagine: temos a maior reserva petroleira do mundo na Venezuela, e agora também Brasil. Um continente com quase metade da água doce de todo o planeta. Apenas na região entre o Brasil e a Argentina é possível produzir alimentos para um bilhão de pessoas. Ou seja, todas as condições estão dadas para isso, e para passar por cima da crise capitalista.


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