terça-feira, 1 de outubro de 2013

Aventuras dialéticas

Por Ruy Braga.


Marshall Berman notabilizou-se internacionalmente por sua obra Tudo que é solido desmancha no ar. Trata-se de uma erudita e instigante análise crítica da história da vida moderna que vai de Goethe a Baudelaire, passando por Marx até alcançar as vanguardas artísticas do século XX. Sob sua pena, a modernidade surgiu como um processo globalizante cujo sentido é a subordinação da vida cotidiana ao impulso homogeneizante do valor de troca. Quase nenhuma esfera da atividade humana é capaz de escapar à mecânica de um impulso irracional que “dissolve” todos os valores culturais nas “águas gélidas do cálculo econômico” (Marx).
No entanto, ao contrário de correntes críticas que viram na modernidade apenas a face deformada do discurso ocidental, racista, patriarcal e colonialista, Berman identificou neste mesmo movimento a promessa da emancipação vindoura. Inspirado pela análise histórica e dialética empreendida por Marx da formação da mercadoria força de trabalho, o veterano professor de filosofia política da Universidade da Cidade de Nova Iorque (CUNY) soube driblar o irracionalismo pós-modernista ao revelar relações culturais e processos mentais que escondem práticas de resistência à dominação do capital.
Conforme Berman, Marx foi o principal crítico “moderno” da modernidade capitalista, capaz de identificar o movimento da história como um fluxo “aberto”, isto é, permeável ao exercício da liberdade criativa da práxis social. Lembro-me de uma história presente em um de seus livros de ensaios, As aventuras do marxismo, onde Berman reproduz a conversa entre duas mulheres negras, avó e neta,  acidentalmente captada em um ônibus na cidade de Nova Iorque. À senhora visivelmente incomodada com os trajes julgados excessivamente curtos da neta, esta retrucou: “Não se preocupe, vovó, pois eu sou moderna”.
Neste caso, “ser” moderna significava ser independente, autônoma, livre: “o indivíduo ousa individualizar-se”, diria. Diferentemente do “estar” moderna, condição da preocupação de sua avó com a honra pessoal derivada da memória de sua condição subalterna. É verdade, não há outra maneira de lidar criticamente com a tendência predominante da modernidade sem partirmos do reconhecimento de que não há capitalismo sem a reprodução do racismo, do sexismo e da colonialidade.
No entanto, Berman entende que as condições para a emancipação estão dialeticamente inscritas nesse mesmo movimento de expansão da modernidade capitalista em escala mundial. Assim, o impulso da modernidade se volta contra seu agente principal, isto é, a própria burguesia:
“A burguesia não pode existir sem revolucionar incessantemente os instrumentos de produção, por conseguinte, as relações de produção e, com isso, todas as relações sociais. (…) Essa subversão contínua da produção, esse abalo constante de todo o sistema social, essa agitação permanente e essa falta de segurança distinguem a época burguesa de todas as precedentes. Dissolvem-se todas as relações sociais antigas e cristalizadas, com seu cortejo de concepções e de ideias secularmente veneradas; as relações que as substituem tornam-se antiquadas antes de se consolidarem. Tudo o que era sólido e estável se desmancha no ar, tudo o que era sagrado é profanado e os homens são obrigados finalmente a encarar sem ilusões a sua posição social e as suas relações com os outros homens.” (Manifesto Comunista, p.43)
Se a ênfase de Berman recaiu sobre a história cultural da modernidade, isto é, sobre a formação de uma determinada mentalidade moderna condensada nas artes plásticas, na literatura e na arquitetura, sobretudo, coube a outro filósofo político marxista, Daniel Bensaïd, a tarefa de reconstituir a dialética da modernidade conforme uma perspectiva marcadamente estratégica. Apoiando-se sobre a nova escrita da história inaugurada em O capital, Bensaïd decidiu revisitar Walter Benjamin e Antonio Gramsci a fim de restituir o sentido propriamente dialético e crítico do projeto revolucionário de Marx. Neste, a potência dialética da modernidade ocupa o centro das lutas de classes.
Esmiuçado em sua trilogia, Walter Benjamin: sentinela messiânicaA discordância dos tempos e Marx, o intempestivo, este projeto de reconstrução dialética do materialismo histórico empreendido por Bensaïd ganhou uma elegante e bem-humorada “apresentação” na forma de Marx, manual de instruções, livro recentemente editado pela editora Boitempo. Resgatando a antiga tradição revolucionária de produzir “manuais” acessíveis aos trabalhadores e atraentes para a juventude, o dirigente político francês não apenas condensou aspectos históricos e biográficos de Marx e de Engels, inserindo-os nas lutas de classes de seu tempo, como também os relacionou às conquistas teóricas que culminaram na publicação, em 1867, do livro I de O capital.
Dentre estas, a mais importante, sem dúvidas, diz respeito a uma interpretação da história do capitalismo condicionada pela causalidade dialética das lutas de classes:
“O capital, cujo conceito Marx cria, é um sistema dinâmico cujas contradições íntimas abrem um leque de possibilidades. A luta de classes decide quais se tornarão efetivas e quais serão abandonadas pelo caminho. Um pensamento capaz de conceber conjuntamente a estrutura e a história, a contingência e a necessidade, o ato e o processo, a reforma e a revolução, o ativo e o passivo, o sujeito e o objeto, é fundamentalmente um pensamento estratégico, uma ‘álgebra da revolução’.” (Marx, manual de instruções, p. 163).
Ao contrário daqueles que reduziram Marx a um reles determinista econômico, Bensaïd soube restabelecer os termos globais de uma leitura crítica e revolucionária, diria estratégica, do pai do socialismo científico. Ao fazê-lo, resgatou do cárcere do esquecimento toda uma tradição de marxistas heréticos: Gramsci, Benjamin, Lukács, Bloch, Sartre, Lefebvre, Mandel… Tradição cujo sentido profundo foi pensar e agir no contra-fluxo, tanto do stalinismo quanto da social-democracia.
Quer destacando a dimensão cultural, quer enfatizando a dimensão estratégica da análise da sociedade moderna empreendida por Marx, Marshall Berman e Daniel Bensaïd, dois dos mais brilhantes representantes de uma geração de socialistas heréticos que amadureceu entre o final dos anos 1960 e o início dos anos 1970, souberam preservar o sentido emancipador do marxismo frente incontáveis tentativas de transformá-lo em uma modorrenta ideologia de Estado. Sem se deixarem seduzir pelo canto da sereia da crítica pós-moderna, os dois filósofos políticos legaram às gerações mais jovens de socialistas chaves teóricas decisivas aptas a iluminar as antinomias da atual sociedade burguesa. Ambos partiram cedo demais e merecem ser lembrados.
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Ruy Braga, professor do Departamento de Sociologia da USP e ex-diretor do Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania (Cenedic) da USP, é autor, entre outros livros, de Por uma sociologia pública (São Paulo, Alameda, 2009), em coautoria com Michael Burawoy, e A nostalgia do fordismo: modernização e crise na teoria da sociedade salarial (São Paulo, Xamã, 2003). Na Boitempo, coorganizou as coletâneas de ensaiosInfoproletários – Degradação real do trabalho virtual (com Ricardo Antunes, 2009) e Hegemonia às avessas (com Francisco de Oliveira e Cibele Rizek, 2010), sobre a hegemonia lulista, tema abordado em seu mais novo livro, A política do precariado: do populismo à hegemonia lulista

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