segunda-feira, 30 de setembro de 2013

Com as reformas recentes, Cuba está abandonando o socialismo?

Seção "Duelos de Opinião" do site Opera Mundi (dois especialistas respondem de formas divergentes a uma pergunta elaborada pela Redação) 

O debate a seguir é sobre a questão: Com as reformas recentes, Cuba está abandonando o socialismo? Os textos foram elaborados por Salim Lamrani -  professor-titular da Universidade de la Reunión - e Osvaldo Coggiola - professor titular de história contemporânea da Universidade de São Paulo.





Com as reformas recentes, Cuba está abandonando o socialismo?  
NÃO

O novo modelo cubano continua sendo socialista

Atualização do modelo econômico suscita críticas e controvérsias. Sem renunciar a seu modelo, a ilha preserva suas conquistas







Por Salim Lamrani*

Desde 2011, Cuba está pondo em marcha a “atualização de seu modelo econômico”. O projeto inicial, elaborado em novembro de 2010, foi submetido a um amplo debate popular (com 8 milhões de participantes) que durou cerca de cinco meses até abril de 2011 e foi adotado durante o VI Congresso do Partido Comunista de Cuba.
Alguns acreditam que se trate de uma volta ao capitalismo, por causa da introdução de alguns mecanismos de mercado na economia nacional. Na realidade, o objetivo dos cubanos é aperfeiçoar seu sistema para preservar suas conquistas sociais, únicas na América Latina e no Terceiro Mundo. Para isso, devem superar dois grandes desafios: os recursos naturais, muito limitados, e as sanções que os Estados Unidos impõem desde 1960, que constituem o principal obstáculo ao desenvolvimento nacional. A isso convém somar as falhas próprias do sistema, como a burocracia ou a corrupção. O presidente Raúl Castro foi claro a esse respeito: “A batalha econômica constitui hoje, mais que nunca, a principal tarefa e o centro do trabalho ideológico dos quadros, porque dela depende a sustentabilidade e a preservação do nosso sistema social”. 
O novo modelo econômico introduz mecanismos de mercado, mas segue baseado na “planificação socialista” em todos os níveis e na “empresa estatal socialista como forma principal da economia nacional”. Não obstante, o país se abre aos investimentos estrangeiros — para atrair os capitais indispensáveis para o desenvolvimento da nação —, mediante empresas mistas, nas quais o Estado cubano sempre dispõe de uma maioria de ao menos 51%. Este modelo atualizado de gestão econômica promove também as cooperativas, as pequenas propriedades agrícolas, os usufrutuários e os trabalhadores independentes em todos os setores produtivos, com a finalidade de reduzir o papel do Estado nos campos estratégicos.
O objetivo destas reformas é conseguir uma melhor eficiência na gestão das atividades econômicas, com um sistema de autonomia e descentralização que responsabiliza diretamente os dirigentes das empresas pelos resultados. Os laços entre as estruturas econômicas são regidos agora exclusivamente por contratos.
As empresas estatais ou as cooperativas estruturalmente deficitárias e não viáveis serão liquidadas ou poderão ser transformadas e adotar uma forma jurídica não estatal. Da mesma maneira, o Estado não vai subvencionar as perdas. Em troca, as empresas beneficiárias poderão investir seus lucros para se desenvolver, aumentar os salários dos trabalhadores nos limites que estabelece a legislação, ou contratar novos trabalhadores. Dispõe, assim, de uma liberdade total no que se refere à gestão dos recursos humanos.
O auge das cooperativas ilustra a vontade cubana de aprofundar o desenvolvimento socialista da economia em todos os setores, com uma propriedade coletiva. Elas dispõem de autonomia completa em todos os níveis. Entretanto, para evitar toda a concentração de riqueza, não podem ser vendidas ou entregues a outra entidade que não seja o Estado.
Na agricultura, a prioridade nacional é a produção de alimentos para reduzir a dependência do exterior em um país que importa mais de 80% do seu consumo. Entrega-se a terra para usufruto dos camponeses, que se transformam em produtores independentes, remunerados por seu próprio trabalho, mas a terra segue sendo propriedade do Estado.
A nova política monetária permite outorgar créditos às empresas e aos cidadãos com o objetivo de favorecer a produção de bens e serviços para a população. Um dos grandes desafios da sociedade é a unificação monetária. De fato, a dualidade monetária vigente em Cuba é fonte de sérias desigualdades. Para isso, devem ser realizados importantes esforços em termos de produtividade e de redistribuição da riqueza de acordo com a lei de redistribuição socialista “de cada qual segundo sua capacidade, a cada qual segundo sua necessidade”.
A política salarial segue baseando-se no principio socialista “a cada qual segundo sua necessidade”, com o objetivo de satisfazer “as necessidades básicas dos trabalhadores e suas famílias”. Os salários vão ser incrementados de modo gradual, em função dos resultados de produção. Para evitar que se produzam desigualdades, a legislação prevê um salário mínimo e um salário máximo. O setor não estatal é favorecido como alternativa adicional para o emprego.
A elaboração de uma imposição tributária em Cuba tem como meta permitir ao Estado dispor dos recursos necessários para cumprir seu papel social com a população. Graças ao imposto progressivo, as categorias mais acomodadas contribuem mais ao esforço nacional, segundo o princípio de solidariedade socialista entre todos os cidadãos. A coesão social continua sendo o objetivo prioritário. Assim, para evitar todo o crescimento das desigualdades na sociedade, a concentração de propriedade está proibida entre as pessoas físicas ou jurídicas, sendo uma prerrogativa exclusiva do Estado. Por outro lado, a política de preços continua sendo centralizada, particularmente sobre os produtos de interesse geral, desde um ponto de vista econômico e social.
Em relação à política social, base do socialismo, o objetivo prioritário não apenas é “continuar preservando as conquistas da Revolução, tais como o acesso à atenção médica, à educação, à cultura, ao esporte, à recreação, à tranquilidade cidadã, à seguridade social e à proteção mediante a assistência social às pessoas que a necessitem”, senão também “dar continuidade ao aperfeiçoamento da educação, da saúde, da cultura e do esporte”. O estado vai garantir “a proteção da assistência social às pessoas que realmente a necessitem”.
O Estado não deixa de lado a cultura. A política cultural é baseada na defesa da identidade, na conservação do patrimônio cultural, na criação artística e literária e na capacidade de apreciar a arte, mediante as formações necessárias. O Estado vai seguir com sua missão de “promover a leitura, enriquecer a vida cultural da população e potencializar o trabalho comunitário como vias para satisfazer as necessidades espirituais e fortalecer os valores sociais”.
Assim, o novo modelo económico cubano, baseado na planificação, com uma política de preços centralizada, com a proibição da concentração de riqueza, com um salário mínimo e um salário máximo e a proteção de todas as categorias da população, particularmente das mais vulneráveis (não houve dispensas massivas), é, sem dúvida, socialista. Mas se adapta à sua época baseando-se na filosofia de José Martí, herói nacional cubano, segundo quem “o primeiro dever do homem é ser um homem de seu tempo”. Tem como objetivo alcançar uma maior eficiência econômica, lutar contra a burocracia e a corrupção — principais obstáculos internos para o desenvolvimento do país —, preservar as conquistas sociais da Revolução Cubana, reforçar a República Social e melhorar o bem-estar material e espiritual de TODOS os cubanos.

*Salim Lamrani é doutor em estudos ibéricos e latino-americanos da Universidade Paris Sorbonne-Paris IV, professor-titular da Universidade de la Reunión e jornalista, especialista nas relaciones entre Cuba e Estados Unidos. Seu último livro se chama Cuba. Les médias face au défi de l’impartialité, Paris, Editions Estrella, 2013, com prólogo de Eduardo Galeano.

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Com as reformas recentes, Cuba está abandonando o socialismo?  
SIM

Só se "sai" do socialismo com revoluções e contrarrevoluções

Já se abriu a via para concessões ao capital externo e para diversas formas de acumulação de capital










Por Osvaldo Coggiola

Não se “entra”, e menos ainda se “sai”, do socialismo através de medidas, mas através de revoluções e contrarrevoluções. Em 1959-1961, a Revolução Cubana derrotou a ditadura pró-EUA de Batista e a reação organizada pelo imperialismo, mediante a mobilização e o armamento dos explorados: pouco importa qual era o percentual de estatização econômica da ilha nesse momento. Com a cumplicidade de todos os governos latino-americanos, Cuba foi excluída da OEA (o “ministério de colônias ianque”, segundo Che Guevara). E passou a sofrer um bloqueio econômico e cerco militar imperialista, presente até hoje, que é uma ameaça exemplar contra toda América Latina.
O Estado cubano, sua política interna e externa, mudou no meio século transcorrido. A dissolução da URSS (1991) foi um episódio marcante, mas o peso contrarrevolucionário da burocracia restauracionista russa já tinha inflexionado a política cubana muito antes. Em 1968, Fidel Castro apoiou a criminosa invasão da Tchecoslováquia pelo Pacto de Varsóvia. No mesmo período, começou também a mudar sua política latino-americana, num sentido estratégico. O crescimento da diferenciação social interna, e de fenômenos de decomposição social visíveis a olho nu, foi paralelo à liberalização econômica e à multiplicação de acordos com o capital externo, em especial europeu, que ocupa um lugar central na atividade que mais fornece divisas para a sobrevivência do regime e do país (o turismo). A classe trabalhadora não só não exerce o poder: está cada vez mais alijada dele como classe. Uma pseudodemocracia “revolucionária” em que está proibido se organizar sobre a base de plataformas políticas (ou seja, de estratégias e partidos) divergentes encobre um poder burocrático baseado num consenso repressivo e em concessões cosméticas a setores culturais ou para uma blogueira reacionária. 
Sob um aparente imobilismo politico-institucional, em nome da “atualização do modelo econômico” se abriu a via para concessões crescentes ao capital externo e para diversas formas de acumulação interna de capital (compra-venda de casas e propriedades imobiliárias, de veículos, etc.). Isto dá um novo potencial econômico aos envios de dinheiro desde Miami, liberalizados por Obama. A dependência cada vez maior do turismo desenvolve peculiarmente a “doença holandesa” na ilha, ao encarecer a produção interna, em primeiro lugar a agricultura. A importação de alimentos para o consumo turístico bloqueia a valorização do agro cubano; um exército crónico de desempregados é criado pelas demissões nas empresas do Estado, numa espécie de “ajuste socialista”. O duplo tipo de câmbio e a circulação do dólar no setor turístico, importante fonte de renda para uma parte substancial da população, aceleram os mecanismos de acumulação internos, encorajando a tendência da burocracia dirigente para converter-se em classe proprietária.
O capitalismo não pode existir sem um mercado de força de trabalho e um setor financeiro, privado ou mesmo estatal (como na China) para financiá-lo. A crise capitalista mundial acelera a tendência para restauração capitalista, mas também a converte em socialmente mais catastrófica. Existem em Cuba fortes e soterradas tendências para a deliberação política popular. A ausência de liberdades e de direitos políticos obstaculiza a capacidade dos trabalhadores para enfrentar a crise a partir de seus interesses de classe. Liberdade sindical e política no campo da revolução são reivindicações fundamentais para lutar por uma saída socialista ao impasse. A Revolução Cubana não é questão privativa da ilha, é parte da revolução latino-americana; seu destino se encontra nas mãos dos trabalhadores de todo o continente, que ora manifestam uma forte tendência para a superação do estreito nacionalismo e para a independência de classe.

*Osvaldo Coggiola é professor titular de história contemporânea da Universidade de São Paulo (USP) e vice-presidente do Andes


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