domingo, 15 de setembro de 2013

A imanência da educação na constituição do ser social


Por Marcos Cesar de Oliveira Pinheiro (*)

A educação é uma atividade inerente à vida dos seres humanos. Desempenha um papel importante no processo de produção da existência humana. Diferentemente dos outros animais, os homens não se mantêm em um estágio de adaptação meramente passiva à realidade natural. O que não é garantido pela natureza tem que ser produzido historicamente pelos homens, inclusive os próprios homens. Em outras palavras, ao mesmo tempo em que transformam a natureza, os seres humanos tem também alterada sua própria natureza. Cria-se o mundo humano, o mundo da cultura, das realizações humanas.
O momento essencial da mudança da relação homem-natureza não é a fabricação de produtos, mas o papel da consciência na realização desse trabalho. Ora, pode-se argumentar, muitos animais “trabalham”. Por exemplo, a abelha, o castor, a formiga e o joão-de-barro constroem suas habitações. Estudos recentes de etólogos (especialistas em comportamento animal) tem observado a existência de uma “tecnologia” símia (a utilização de pedras como “martelo” e o uso de galhos como “lança” para caçar ou como “vara” para pescar), em especial nos grandes macacos africanos e nos macacos-pregos, há tempos com a fama de “chimpanzés das Américas”. No entanto, “o que distingue o pior arquiteto da melhor abelha é que ele figura na mente sua construção antes de transformá-la em realidade” (MARX, 2005, p. 211-212). É a atividade vital consciente que diferencia o homem imediatamente da atividade vital animal (idem, 2004, p. 84). Como escreve Marx, “o homem vive da natureza significa” que “a natureza é o seu corpo, com o qual ele tem de ficar num processo contínuo para não morrer”, de modo “que a vida física e mental do homem está interconectada com a natureza não tem outro sentido senão que a natureza está interconectada consigo mesma”, porque “o homem é parte da natureza” (idem; grifos do autor).  Considerado aqui em sua acepção geral, o trabalho é “atividade produtiva”, a determinação ontológica fundamental da “humanidade”, isto é, o modo realmente humano de existência. “A atividade produtiva é então a fonte da consciência” (MÉSZÁROS, 2006, p. 80). Pode-se afirmar, então, que o homem que trabalha é o animal tornado homem através do trabalho.
O processo de produção da existência humana, em primeiro lugar, implica a garantia da sua subsistência material. Entretanto, para produzir materialmente, para além das formas instintivas de trabalho, o homem necessita antecipar em ideias os objetivos da ação. Desse modo, o produto é um resultado que já existia antes idealmente na imaginação do trabalhador (MARX, 2005, p. 212). Ou seja, toda atividade laborativa surge como resposta, ainda que nem sempre perfeita, para solucionar o carecimento que a provoca. Eis porque Marx considera que a sociedade se constitui a partir de condições materiais de produção e da divisão social do trabalho, que as mudanças históricas são determinadas pelas modificações naquelas condições materiais e naquela divisão do trabalho, e que a consciência humana é determinada a pensar as ideias que pensa por causa das condições materiais instituídas pela sociedade. “Não é a consciência dos homens que determina o seu ser; é o seu ser social que, inversamente, determina sua consciência” (idem, 2008b).
 A educação tem aqui um papel fundamental.  Uma vez que a “natureza humana” não é dada ao homem, mas deve ser produzida pelos próprios homens, eles precisam aprender a produzir a sua própria existência. O processo histórico de formação (Bildung) do homem representa em si um processo educativo. A educação “é, ao mesmo tempo, uma exigência do e para o processo de trabalho, bem como é, ela própria, um processo de trabalho” (SAVIANI, 2008, p. 12). Nesse sentido, o trabalho educativo “é o ato de produzir direta e intencionalmente, em cada indivíduo singular, a humanidade que é produzida histórica e coletivamente pelo conjunto dos homens” (idem, p. 7). Como indica Mészáros (2006, p. 172), a educação – não em um limitado sentido institucional – “abarca todas as atividades que podem se tornar uma necessidade interna para o homem, desde as funções humanas mais naturais até as mais sofisticadas funções intelectuais”. Portanto, a educação é um momento essencial da vida humana, presente em toda atividade humana, articulada a toda práxis, como o próprio processo de constituição do ser social. A existência humana é um constante aprendizado. Não é forçoso afirmar, com base na percepção paracelsiana sobre a educação, que a aprendizagem é a nossa própria vida, desde a juventude até a velhice, de fato até a morte; ninguém passa nenhum instante sem nada aprender (SOUSA JR, 2010, p. 21, nota 8).[1]
A educação existe (e sempre existiu) em todas as sociedades. Cada época a define e encara de um modo diverso. “Nenhuma sociedade pode perdurar sem seu sistema próprio de educação” (Mészáros, 2006, p. 263). Como qualquer outro aspecto do mundo humano, a educação é uma dimensão que se transforma historicamente, articulada às transformações do modo como os homens produzem a sua existência, vivenciando e expressando os movimentos contraditórios que emergem do processo de constituição da sociabilidade humana.
Da antiguidade aos dias atuais, estão séculos de reflexões sobre a educação. Não somente intelectuais diretamente ligados ao campo da pedagogia, mas também sociólogos, filósofos e tantos outros influenciam em questões fundamentais do debate educacional: O que é educação? Quem educa? Quem é educado? Por que se educa? Desde quando e até quando se educa? Onde se educa? Que vínculos devem existir entre educação e sociedade? Que valor tem o contexto cultural na educação? Viu-se aparecer, ao longo desses anos, uma rica elaboração teórica acerca da problemática da educação, abarcando uma pluralidade de contextos, com uma variedade ainda maior de significados e conotações ideológicas. A diversidade de postulados teóricos é enorme, um quadro abrangente de afiliações filosóficas: idealismo, naturalismo, existencialismo, empirismo, humanismo, evolucionismo, positivismo, liberalismo, marxismo.
Não obstante as imagens distintas e ecos e ressonâncias específicos nos diferentes interlocutores, segundo a acepção e/ou o uso que a ideia de educação tenha para cada um, é impossível perceber o sistema educacional[2] de uma sociedade sem expressa referência histórica ao seu modo de produção – conjunto das relações de produção historicamente determinadas em que se configura a estrutura econômica da sociedade. Em termos gerais, o modo de produção da vida material dos homens condiciona o desenvolvimento da vida social, política e intelectual, não desprezando, evidentemente, o papel da subjetividade na história humana, isto é, do acidente, da casualidade e das opções pessoais nos acontecimentos históricos, como assinalou Marx em diversas ocasiões. Segundo István Mészáros:

As sociedades existem por intermédio dos atos dos indivíduos particulares que buscam realizar seus próprios fins. Em consequência, a questão crucial, para qualquer sociedade estabelecida, é a reprodução bem-sucedida de tais indivíduos, cujos “próprios fins” não negam as potencialidades do sistema de produção dominante. [...] Além da reprodução [...] das múltiplas habilidades sem as quais a atividade produtiva não poderia ser levada a cabo, o complexo sistema educacional da sociedade é também responsável pela produção e reprodução da estrutura de valores no interior da qual os indivíduos definem seus próprios objetivos e fins específicos. [...] Os indivíduos particulares interiorizam as pressões internas: eles adotam as perspectivas gerais da sociedade [...] como os limites inquestionáveis de suas próprias aspirações. (Mészáros, 2006, p. 263-264; grifos do autor)

Assim, os indivíduos contribuem para a manutenção de uma concepção de mundo e de uma forma específica de intercâmbio social, que corresponde àquela concepção do mundo (idem, p. 264). Partindo do exposto, educação é “o processo pelo qual a sociedade atua constantemente sobre o desenvolvimento do ser humano no intento de integrá-lo no modo de ser social vigente e de conduzi-lo a aceitar e buscar os fins coletivos” (PINTO, 2010, p. 31-32).
Como aponta Aníbal Ponce, nas antigas sociedades sem classes sociais, a educação deriva da estrutura homogênea do ambiente social e identifica-se com os interesses comuns do grupo e se realiza igualitariamente em todos os seus membros (PONCE, 2007, p. 21). Desse modo, segundo o autor, trata-se de um processo educativo espontâneo e integral. Espontâneo, na medida em que não há nenhuma instituição destinada a inculcá-los, e integral no sentido que cada membro incorpora mais ou menos bem tudo o que é possível receber e elaborar naquelas sociedades (idem, p. 22). Com o aparecimento das sociedades divididas em classes sociais, a educação sofre uma partição: “a desigualdade econômica entre os ‘organizadores’ – cada vez mais exploradores – e os ‘executores’ – cada vez mais explorados – trouxe, necessariamente, a desigualdade das educações respectivas” (idem, p. 26; grifos do autor). Ponce prossegue afirmando que:

O ideal pedagógico já não pode ser o mesmo para todos; não só as classes dominantes tem ideais muito distintos dos da classe dominada, como ainda tentam fazer com que a massa laboriosa aceite essa desigualdade de educação como uma desigualdade imposta pela natureza das coisas, uma desigualdade, portanto, contra a qual seria loucura rebelar-se. (idem, p. 36)

Trata-se, como já citado anteriormente, “de uma “questão de ‘internalização’ pelos indivíduos da legitimidade da posição que lhes foi atribuída na hierarquia social, juntamente com suas expectativas ‘adequadas’ e as formas de conduta ‘certas’” (MÉSZÁROS, 2008, p. 44). A educação concebida segundo esse esquema conforma-se sob o signo da dominação, implicando uma assimetria nas relações sociais. Por esta razão, a estrutura econômica da sociedade, ou seja, a base real sobre a qual se eleva um edifício jurídico, político e cultural, “dita os fins gerais da educação, que determina se em uma dada comunidade serão formados indivíduos de níveis culturais distintos, de acordo com sua posição no trabalho comum” nas sociedades atravessadas, e movidas, por conflitos sociais, onde há explorados e exploradores, “ou se todos devem ter as mesmas oportunidades e possibilidades de aprender” (PINTO, 2010, p. 34).  
No entanto, a relação entre a base econômica, princípio diretor do desenvolvimento histórico, e a educação, como fenômeno social de superestrutura, não pode ser considerada como um mero nexo causal, no qual o primeiro termo figura apenas como causa e o segundo aparece unicamente como efeito. “Num processo tão multiforme e estratificado como o é a evolução da sociedade, o processo total do desenvolvimento histórico-social só se concretiza em qualquer dos seus momentos como uma intrincada trama de interações” (LUKÁCS, 2010, p. 13). Em outras palavras, deve-se levar em conta a relativa autonomia do desenvolvimento dos campos particulares da atividade humana – neste caso, a educação –, mas sem cair na armadilha da absolutização do particular. Aliás, Paulo Freire aponta duas maneiras antidialéticas de entender a educação e que devem ser superadas:

De um lado, o otimismo ingênuo [de natureza idealista] que tem na educação a chave das transformações sociais, a solução para todos os problemas; de outro, o pessimismo igualmente acrítico e mecanicista de acordo com o qual a educação, enquanto supra-estrutura, só pode algo depois das transformações infra-estruturais. (FREIRE, 2007a, p. 100)

Como nos mostra Aníbal Ponce, a educação só pode ser compreendida através da análise socioeconômica da sociedade que a mantém. Ele coloca em evidência o princípio da dialética da relação entre consciência e a estrutura econômica, demonstrando que a educação não está separada da luta de classes. A luta pelo direito à educação e à cultura acompanha a luta pelos demais direitos (PONCE, 2007). Desde o surgimento da sociedade dividida em classes, o conhecimento é propriedade quase exclusiva das classes dominantes, dos intelectuais e setores da sociedade a serviço das classes dominantes. No entanto, observa-se ao longo do desenvolvimento histórico uma progressiva “popularização” do conhecimento. Se a educação é, inicialmente, negada quase que completamente às classes menos favorecidas, por que se dá esse processo de “popularização”?

As transformações econômicas por que passaram inevitavelmente todas as sociedades foram provocando modificações sensíveis no status quo, foram fazendo com que massas cada vez maiores de indivíduos tivessem acesso a uma educação conveniente. Todavia, é claro que essas transformações mencionadas não ocorreram sempre suavemente. Muito ao contrário. As mais das vezes, as classes desfavorecidas tiveram de lutar, e frequentemente de modo violento – Revolução Francesa e Revolução Soviética, os dois exemplos principais, a emancipação da burguesia e a libertação do proletariado – pelos seus direitos. (PEREIRA, José S. de Camargo. Prefácio da tradução brasileira. In: PONCE, 2007, p. 11)

Nesse sentido, é de suma importância o estudo das lutas mantidas pelas classes populares contra as classes dominantes, no sentido de conquistarem o direito de se educarem, de ter o conhecimento necessário para transformar e compreender criticamente a sociedade em que vivem. Por isso, é fundamental ter clareza da articulação entre a estrutura, impondo certos limites às ações dos sujeitos históricos, e a conjuntura, em que os homens reais se movimentam e operam, tomando iniciativas e lutando pela destruição, pela defesa ou pela conservação de determinadas estruturas econômico-sociais.
As análises históricas devem consistir em “saber encontrar a justa relação entre o que é orgânico e o que é ocasional”, fazendo a devida “distinção entre ‘movimentos’ e fatos orgânicos e movimentos e fato de ‘conjuntura’” (GRAMSCI, 2002: p. 37). Preocupação esta para não incorrer no erro de “expor como imediatamente atuantes causas que, ao contrário, atuam mediatamente”, excedendo-se de “economicismo” ou de “doutrinarismo” pedante, superestimando as causas mecânicas; ou então, “afirmar que as causas imediatas são as únicas causas eficientes”, tendo “ideologismo” em demasia, exaltando “o elemento voluntarista e individual” (idem).
A posição de Gramsci sobre a problemática da autonomia relativa das instâncias superestruturais, na qual a educação está incluída, pode ser identificada no trecho que se segue do livro de Giovanni Semeraro:

O homem, para Gramsci, é impensável fora da história das relações sociais e das transformações operadas na natureza em virtude do trabalho organizado socialmente. (...) Ainda que livre e criativo, portanto, o indivíduo vive dentro dum conjunto de relações sociais cuja totalidade forma o campo do “historicismo absoluto”. Se é na historicidade que se realiza a atividade humana, então, tanto as “condições materiais” como a atividade do “espírito” e da cultura não são outra coisa senão o resultado cristalizado de sujeitos concretos que operam no tempo e buscam superar as contradições com uma práxis consciente e transformadora. (...) A passagem da estrutura à superestrutura, da necessidade à liberdade, para Gramsci é o momento no qual o indivíduo se transforma em ser social, no qual se produz o sentido unitário da sociedade e se forma o “bloco histórico” que permite integrar dialeticamente as forças da esfera econômica com as expressões culturais e a participação política das massas excluídas. (SEMERARO, 2001: p. 154-156)

De forma sucinta, o educador Paulo Freire, em sua obra clássica Pedagogia do Oprimido, esclarece bem a questão da relação dialética entre subjetividade e objetividade. Embora longa, a citação expõe eloquentemente uma posição importante para pensar dialeticamente a educação:

A objetividade dicotomizada da subjetividade, a negação desta na análise da realidade ou na ação sobre ela, é objetivismo. Da mesma forma, a negação da objetividade, na análise como na ação, conduzindo ao subjetivismo que se alonga em posições solipsistas, nega a ação mesma, por negar a realidade objetiva, desde que esta passa a ser criação da consciência. Nem objetivismo, nem subjetivismo ou psicologismo, mas subjetividade e objetividade em permanente dialeticidade.
Confundir subjetividade com subjetivismo, com psicologismo, e negar-lhe a importância que tem no processo de transformação do mundo, da história, é cair num simplismo ingênuo. É admitir o impossível: um mundo sem homens, tal qual a outra ingenuidade, a do subjetivismo, que implica homens sem mundo.
Não há um sem os outros, mas ambos em permanente integração.
Em Marx, como em nenhum pensador crítico, realista, jamais se encontrará esta dicotomia. O que Marx criticou e, cientificamente destruiu, não foi a subjetividade, mas o subjetivismo, o psicologismo.
A realidade social, objetiva, que não existe por acaso, mas como produto da ação dos homens, também não se transforma por acaso. Se os homens são os produtores desta realidade e se esta, na “inversão da práxis”, se volta sobre eles e os condiciona, transformar a realidade opressora é tarefa histórica, é tarefa dos homens. (FREIRE, 2003: p. 37)

A educação é inerentemente contraditória, pois é um dos aspectos substantivos e essenciais do processo histórico da constituição do ser social, perpassada pela incessante dinâmica da realidade concreta que gera as contradições e os conflitos sociais. Na tese IV de seu escrito “Sobre o conceito de história” (1940), Walter Benjamin afirma que é a luta de classes “que um historiador escolado em Marx tem sempre diante dos olhos” (apud LÖWY, 2005, p. 58). Uma leitura dialética do que foi a educação até hoje permite descortinar o processo de presentificação da história, em que o devir da história foi esvaziado, uma vez que a classe dominante se apresenta como o fruto e o fim da história – procura-se neutralizar o perigo da história, ou seja, impedir a percepção da historicidade. Trata-se de uma luta ideológica, que é uma das formas da luta de classes, da luta pela hegemonia.
Segundo Marilena Chaui, “a operação ideológica passa por dois ocultamentos: o da divisão social e o do exercício do poder por uma classe social sobre outra” (CHAUI, 2007, p. 39). Esses ocultamentos são obtidos através de uma prática e de um discurso coercitivos, ainda que a coerção não esteja imediatamente visível, uma vez que transformado em consenso invisível e interiorizado. A prática e o discurso dominantes se revestem de generalidade e de universalidade, buscando “criar em todos os membros da sociedade o sentimento de que fazem parte dela da mesma maneira e, que a contradição não existe, ou melhor, a contradição deve aparecer como simples diversidade ou como diferentes maneiras, igualmente legítimas, de participação” na sociedade (idem, p. 51-52). Anula-se e se oculta a realidade das classes, visto que as “classes laboriosas” e as “classes dirigentes” são apresentadas “apenas como variantes do cidadão e da pessoa, contidas em germe na natureza humana” (idem, p. 52).
A luta ideológica não é somente “batalhas das idéias”, uma vez que estas ideias possuem uma “estrutura material”, articula-se em “aparelhos” estabelecidos para a formação do consenso – ou dito de outra maneira, voltados para manter, defender e desenvolver a frente ideológica de uma classe dominante. Tudo o que influi ou pode influir sobre a opinião pública faz parte da estrutura ideológica: a imprensa, as bibliotecas, as escolas, associações de variado tipo, até a arquitetura, a disposição e o nome das ruas (LIGUORI, 2007, p. 90). Este conjunto de trincheiras e fortificações da classe dominante requer um complexo trabalho ideológico para gerar e transmitir um quadro de valores que legitima os interesses dominantes, fazendo incutir a ideia de que não há nenhuma alternativa à gestão da sociedade, “seja na forma ‘internalizada’ (isto é, pelos indivíduos devidamente ‘educados’ e aceitos) ou através de uma dominação estrutural e uma subordinação hierárquica e implacavelmente imposta” (MÉSZÁROS, 2008, p. 35).
Observa-se isso nos fundamentos ideológicos do pensamento medieval, postulando a unidade e organicidade do corpo social, cuja ordem natural do universo culmina na figura de Deus (Tomás de Aquino); assim como no pensamento burguês que se constrói a partir da premissa da harmonia de interesses que se compensam no âmbito do mercado e o Estado, cuja “mão invisível” (Adam Smith) é a expressão abstrata e transcendente do estado de coisas existentes. Ambos aspiram “eternizar” a sociedade defendida respectivamente por cada um e suas instituições. “O autoritarismo existe sempre e toda vez que as representações e normas, pelas quais os sujeitos sociais e políticos interpretam suas relações, sejam representações e normas vindas de um pólo ou de um lugar exterior à sociedade e situado acima dela” (CHAUI, 2007, p. 52).
Nos seus Manuscritos econômico-filosóficos e no texto O 18 Brumário de Luís Bonaparte, Karl Marx assume uma postura crítica sobre a ideia de naturalização da história, qual seja, o estranhamento do cotidiano como natural, tudo merece ser explicado, nada é natural. Marx adverte que a recorrência ao passado, prática comum na vivência das revoluções burguesas, se constitui numa artimanha política. Trata-se de obscurecer as vivências revolucionárias do presente.

[Quando os homens] “parecem ocupados a revolucionar-se, a si e às coisas, mesmo a criar algo de ainda não existente, é precisamente nessas épocas de crise revolucionária que esconjuram temerosamente em seu auxílio os espíritos do passado, tomam emprestados os seus nomes, as suas palavras de ordem e de combate, a sua roupagem, para, com esse disfarce de velhice venerável e essa linguagem emprestada, representar a nova cena da história universal” (Marx, 2008a, p. 207-208).

Com a derrocada do chamado “socialismo real” e a intensa propaganda sobre a “crise do marxismo”, pode-se assistir a mais uma ofensiva da ideologia burguesa, a fim de revigorar a tese de que o capitalismo e a democracia burguesa constituem o coroamento da história da humanidade. Uma das manifestações mais emblemáticas dessa ofensiva foi, primeiramente, o artigo “The end of history”, em 1989, publicado na revista norte-americana The national interest,e, posteriormente, o livro “O fim da história e o último homem”, editado no Brasil pela Editora Rocco, em 1992. Ambos de autoria de Francis Fukuyama.
O poder de uma classe dominante não é simplesmente o resultado de sua força econômica e política ou da distribuição da propriedade, ou das transformações econômicas, mas “pressupõe sempre um triunfo histórico no combate às classes subalternas” (LÖWY, 2005, p. 60). Na manutenção dos “de baixo” no seu devido lugar da estrutura hierárquica vigente. Exerce aqui o sistema de educação da sociedade sua função de preservar os “padrões civilizados” dos que são designados para “educar” e governar, contra “a anarquia e a subversão”. Trata-se de proclamar e difundir as vitórias e os sucessos alcançados pelas classes dominantes, de hoje e do passado, nos permanentes embates sociais travados ao longo do processo histórico. Nessa lógica de legitimação da ordem estabelecida como uma “ordem natural” supostamente inalterável, a história deve então ser reescrita e propagandeada de forma ainda mais distorcida pelos órgãos que em larga escala formam a opinião pública, como jornais de grande tiragem e as emissoras de rádio e de televisão, pelo sistema escolar e, também, pelas “supostamente objetivas teorias acadêmicas” (MÉSZÁROS, 2008, p. 37; PRESTES, 2010). Como diz Walter Benjamin, nem os mortos estão seguros diante do inimigo, se ele for vitorioso, e conclui que “esse inimigo não tem cessado de vencer” – tese VI de “Sobre o conceito de história” (apud LÖWY, 2005, p. 65) –, sendo os ideais e as lutas dos setores derrotados em seus propósitos revolucionários e transformadores esquecidos, silenciados, deturpados e combatidos (PRESTES, 2010, p. 94).
À guisa de ilustração do exposto acima, não é de surpreender, por exemplo, um artigo publicado no jornal Folha de São Paulo, em 20 de fevereiro de 2011, intitulado “De volta ao leninismo?”, considerando que a imprensa é a parte mais dinâmica da estrutura ideológica dominante atualmente. Neste artigo, para criticar o pacote de afrouxamento das regras para licença ambiental preparado pelo governo brasileiro, Rubens Ricupero, ao invés de analisar os interesses do mercado capitalista por trás da medida, associa o fato a uma volta, por parte do governo, ao lema leninista "o comunismo são os sovietes mais a eletrificação". Adverte, no entanto, que não se refere “ao defunto comunismo e aos olvidados sovietes”, mas à essência desta mentalidade de “desenvolvimento visto como mera acumulação material de obras sem preocupação com os efeitos sobre as pessoas ou a natureza”. O resultado, segundo o autor, foi “converter a finada União Soviética no maior canteiro de destruição ambiental do planeta, da secagem do Mar de Aral à explosão da usina nuclear de Chernobyl”. Prossegue afirmando que “os danos ambientais provaram ser irreversíveis, constituindo, ao lado dos milhões de vítimas do stalinismo, testemunho imperecível da loucura bolchevista”. Embora tenha sua parcela de culpa, parece que, seguindo o raciocínio de Ricupero, a finada União Soviética foi, de fato, a grande responsável pela degradação do meio ambiente no século XX. Trata-se, na verdade, de um exemplo da campanha sistemática com vista a distorcer a história por parte das classes dominantes, através de seus intelectuais orgânicos e dos “aparelhos hegemônicos”. Qualquer outra visão da história, e qualquer outra forma de pensar e de agir, é barbárie e loucura.
As classes dominantes sabem, conforme é apontado por Marta Harnecker, que “um povo sem memória é um povo sem futuro” e por isso mantêm-se empenhadas em desqualificar não somente as suas lideranças, “como também e, fundamentalmente, a memória da luta dos nossos povos” (HARNECKER, 2000, p. 70). O “triunfo histórico no combate às classes subalternas”, longe de ser um argumento para aquilo que Paulo Freire chamou de “pessimismo imobilizante”, mostra, na realidade, que “as classes sociais, o conflito de classes e a consciência de classe existem e desempenham um papel na história” (HOBSBAWM, 2000: p. 33). Se durante o processo de autorreprodução da sociedade existe a necessidade recorrente do falseamento e do silêncio referentes a numerosos acontecimentos que não são do interesse dos setores dominantes que sejam do conhecimento da grande maioria das pessoas e, em particular, das novas gerações (PRESTES, 2010, p. 94), isso significa que a hegemonia das classes dominantes nunca é absoluta, há sempre o risco do aparecimento de propostas libertadoras e de emancipação de homens e mulheres explorados, oprimidos e subordinados de uma sociedade dividida em classes.
A educação – em sentido amplo ou em significado restrito – é um espaço de disputas hegemônicas, em que o processo de ensino-aprendizagem é perpassado por elementos políticos e ideológicos. “Aprende-se a todo momento, mas o que se aprende depende de onde e de como se faz essa aprendizagem” (SADER, Emir. Prefácio do livro. In: MÉSZÁROS, 2008, p. 16). A compreensão crítica dos limites da prática educativa está relacionada com o problema do poder, que é de classe e, por isso mesmo, com a questão da luta e do conflito de classes. É indispensável o entendimento do nível em que se acha a luta de classes em uma dada sociedade para a demarcação dos espaços, dos conteúdos da educação, do historicamente possível, portanto, dos limites da prática político-educativa (FREIRE, 2007a, p. 49). A maior ou menor profundidade com que o conflito de classes vai sendo vivido nos indica as formas de resistência possíveis das classes populares, em certo momento. A luta de classes não está presente apenas “quando as classes trabalhadoras, mobilizando-se, organizando-se, lutam claramente, determinadamente, com suas lideranças, em defesa de seus interesses, mas, sobretudo, com vistas à superação do sistema capitalista”. Ela “existe também, latente, às vezes escondida, oculta, expressando-se em diferentes formas de resistência ao poder das classes dominantes (idem, p. 50).
Gramsci afirma que “existe luta entre duas hegemonias, sempre” (apud LIGUORI, 2007, p. 29), no qual tanto os dominados quanto os dominadores levam a cabo suas lutas ideológicas. Difícil pensar a educação desvinculada das relações de poder, de hegemonia. No entanto, muitas correntes do pensamento educacional, como o construtivismo e as pedagogias similares, bastante disseminadas na educação brasileira, não enxerguem a educação, em sua relação dialética com a sociedade, como um lugar que se dá uma intensa luta pela hegemonia, um campo de disputa, velada ou aberta, entre propostas de sociedade, entre diferentes concepções de mundo, expressando a mutável correlação de forças entre as classes. De visão idealista, em sua maioria, estas pedagogias estão, propositalmente ou não, impregnadas de ideias e imagens que estão presente na ideologia dominante da sociedade contemporânea. Portanto, bastante compatíveis com aquele processo de presentificação da história falado anteriormente. Isso porque estão centradas no processo de adaptação do indivíduo ao seu meio social. Como diz Newton Duarte: “O objetivo não é que as pessoas se apropriem do conhecimento para utilizá-lo em processos de transformação da sociedade. O objetivo é a adaptação” (DUARTE, 2009, p. 3). Contrariamente as suas aparências sedutoras, estas pedagogias “pós-modernas” fortalecem e renovam a lógica desumanizadora do capital.
Em relação à incorrigível lógica do capital e seu impacto sobre a educação, István Mészáros afirma que:

Não surpreende, portanto, que mesmo as mais nobres utopias educacionais, anteriormente formuladas do ponto de vista do capital, tivessem de permanecer estritamente dentro dos limites da perpetuação do domínio do capital como modo de reprodução social metabólica. Os interesses objetivos de classe tinham de prevalecer mesmo quando os subjetivamente bem-intencionados autores dessas utopias e discursos críticos observavam claramente e criticavam as manifestações desumanas dos interesses materiais dominantes. Suas posições críticas poderiam, no limite, apenas desejar utilizar as reformas educacionais que propusessem para remediar os piores efeitos da ordem reprodutiva capitalista estabelecida sem, contudo, eliminar os seus fundamentos causais antagônicos e profundamente enraizados. (MÉSZÁROS, 2008, p. 26)

A construção da hegemonia é um ato pedagógico. “Toda relação de ‘hegemonia’ é necessariamente uma relação pedagógica”, que “não pode ser limitada às relações especificamente ‘escolares’” (GRAMSCI, 2004: p. 399), em significado restrito da pedagogia clássica, convencional e sistematizada. As relações educacionais constituem o próprio núcleo da hegemonia, enquanto relações sociais produtoras de sentido e de difusão de uma concepção de mundo convertida em norma de vida (idem, p. 321).



(*) Doutorando do Programa de Pós-Graduação em História Comparada (PPGHC) da UFRJ e professor de História da Rede Municipal de Educação Pública de Rio das Ostras.
[1] O texto literal de Paracelso, pensador do século XVI, é o seguinte: “A aprendizagem é a nossa própria vida, desde a juventude até a velhice, de fato até quase a morte; ninguém passa dez horas sem nada aprender” (apud Mészáros, 2006, p. 267)
[2] Trata-se não apenas das instituições educacionais formais, mas do sistema global de “internalização” historicamente prevalecente. As instituições formais de educação são uma parte importante desse sistema, porém apenas uma parte. Muito do processo contínuo de aprendizagem dos seres humanos se situa fora dessas instituições. (Cf. Mészáros, 2008, p. 44, 52 e 53)


Referências Bibliográficas

CHAUI, Marilena. Cultura e Democracia: o discurso competente e outras falas. 12 ed. São Paulo: Cortez, 2007.
DUARTE, Newton. “A tragédia do construtivismo”. Entrevista com Newton Duarte. In: Folha do Estudante, n. 3, p. 3-4, março/abril 2009.
FREIRE, Paulo . Pedagogia do Oprimido. 37 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2003.
____ . Política e Educação. 8 ed. Indaiatuba: Villa das Letras, 2007.
GRAMSCI, A. Cadernos do Cárcere. Vol. 3. 2 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.
____ . Cadernos do Cárcere. Vol. 1. 3 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004.
HARNECKER, Marta. Tornar possível o impossível: a esquerda no limiar do século XXI. São Paulo: Paz e Terra, 2000.
HOBSBAWM, E. Mundos do Trabalho. 3a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2000.
LIGUORI, Guido. Roteiros para Gramsci. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2007.
LÖWY, Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio – uma leitura das teses “Sobre o conceito de história”. São Paulo: Boitempo, 2005.
LUKÁCS, G. “Introdução aos escritos estéticos de Marx e Engels”. In: MARX, K. e ENGELS, F. Cultura, arte e literatura: textos escolhidos. São Paulo: Expressão Popular, 2010.
MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2004.
____ . O Capital. Crítica da Economia Política. Livro 1, v. 1. 20 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.
____ . “O 18 Brumário de Luís Bonaparte”. In: ____ . A revolução antes da revolução. São Paulo: Expressão Popular, 2008a.
____ . Contribuição à crítica da economia política. São Paulo: Expressão Popular, 2008b.
MÉSZÁROS, István. A teoria da alienação em Marx. São Paulo: Boitempo, 2006.
____ . A educação para além do capital. 2 ed. São Paulo: Boitempo, 2008.
PINTO, Álvaro Vieira. Sete lições sobre educação de adultos. 16 ed. São Paulo: Cortez, 2010.
PONCE, Aníbal. Educação e luta de classes. 22 ed. São Paulo: Cortez, 2007.
PRESTES, Anita Leocadia. “O historiador perante a História Oficial”. In: Germinal: Marxismo e Educação em Debate, Lodrina, v. 1, n. 2, p. 91-96, jan. 2010.
SAVIANI, Dermeval. Pedagogia histórico-crítica: primeiras aproximações. 10 ed. Campinas: Autores Associados, 2008.
SEMERARO, Giovanni. Gramsci e a sociedade civil: cultura e educação para a democracia. 2 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2001.
SOUSA JR, Justino de. Marx e a crítica da educação: da expansão liberal-democrática à crise regressivo-destrutiva do capital. Aparecida, SP: Idéias & Letras, 2010.


Nenhum comentário:

Postar um comentário