domingo, 30 de junho de 2013

Ciro Flamarion Cardoso (20/8/1942-29/6/2013): referência da historiografia marxista no Brasil


Entrevista de Ciro Flamarion Cardoso, falecido no final da tarde deste sábado, 29/6/2013, publicada na Revista de História da Biblioteca Nacional, n. 84, setembro de 2012, p. 52-57.

"O Ciro Flamarion Cardoso foi muito importante. Mesmo eu cursando o mestrado na UFRJ, fiz créditos na UFF com o Ciro Cardoso. Assisti um curso de Metodologia com ele, lí vários dos seus livros e admiro muito seus escritos sobre metodologia da história. Considero que ele é um dos maiores historiadores marxistas que temos no Brasil. O Ciro Cardoso me ajudou muito na elaboração da minha tese de doutorado, que foi orientada pela [Maria] Yedda Linhares." (Anita Prestes falando de sua formação como historiadora. In: Revista Novos Temas, n. 7, 2012, p. 27)

Contracorrente


Rodrigo Elias e Bruno Garcia

Ele nunca foge de polêmicas. Prestes a se aposentar do serviço público, recebendo homenagens de colegas e ex-alunos, o professor Ciro Flamarion Cardoso plantou ventos na historiografia durante décadas. De início, recusou-se a acreditar em teorias fatalistas sobre o passado brasileiro. Ao contrário do pensamento dominante nas décadas de 1960 e 1970, defendia que as sociedades americanas do período colonial não eram apenas uma extensão do sistema europeu, mas tinham lógicas próprias. Nos anos seguintes, viu a confirmação das suas suspeitas. Quando ninguém esperava, mudou de rumo: decidiu seguir uma antiga paixão e virar egiptólogo.

 Ele pesquisa, escreve, orienta teses e ensina na área há mais de 30 anos. Mas não abandonou os outros interesses: ao lado destes temas, a crítica ao marxismo – corrente à qual ele próprio é filiado. Remando contra a maré, combateu uma visão linear da História, pregada por partidos políticos e estudiosos de esquerda. Mas ainda não acabou: hoje vira suas baterias contra o pós-modernismo e uma das vedetes da historiografia mundial – a nova história cultural.

Pontual, claro e sem meias palavras, Ciro conversou com aRevista de História na Universidade Federal Fluminense, em Niterói. E, sem perder o hábito, disparou: “O que mais me incomoda é uma historiografia que não se mostra preocupada com o mundo ao qual pertence”. A julgar pelo histórico do nosso entrevistado, não é má ideia observar em que direção navega – mesmo que seja contra o vento.

REVISTA DE HISTÓRIA Por que as pessoas estão, aparentemente, mais interessadas por História?

CIRO FLAMARION CARDOSO Não acho que seja algo novo. Desde que institucionalizaram a pós-graduação no país, na década de 1970, o número de cursos vem aumentando. Ainda assim, a História não é um curso dos mais populares. O curioso é que as pessoas têm buscado a História para estudar o século XX, o século XXI, períodos cada vez mais recentes, mais próximos de nós.

RH É a chamada História do tempo presente.
CFC Pois é.Ou História imediata. Eu me pergunto: por que esse tipo de pessoa não vai fazer, por exemplo, Sociologia? Acho que há várias respostas. As pessoas acreditam que a História oferece uma informação talvez mais articulada. Por mais que se afirme que ela acabou, a História ainda tem uma dialética: passado, presente, futuro.

RH E a Antropologia?
CFC Eu tenho a impressão de que a Antropologia se renovou mais do que a Sociologia. Ambas surgiram mais ou menos na mesma época, mas, ao longo do tempo, a Sociologia ficou presa a certos parâmetros e bases que não mudaram tanto. A Antropologia nos apresentou novidades muito importantes. Talvez a mais interessante tenha a ver com o conjunto de tendências interacionistas também conhecidas como individualismo metodológico. Estou me referindo a nomes como Jon Elster e Pierre Bourdieu, que encabeçaram a tendência de se concentrar não somente nas ações e interações individuais, mas também na institucionalização de uma parte do resultado delas, que constitui, afinal de contas, o social. Se assim não fosse, como explicar fenômenos de longa duração como o da guerra entre os Dâni da Nova Guiné, com um longo ciclo “ritual” pouco mortífero e um curto ciclo “secular” ou “mundano” marcado por grandes carnificinas? Se as ações e interações individuais só criassem fenômenos evanescentes, não seria de se esperar exemplos desse tipo. E as pessoas não teriam de “aprender”, mediante processos de socialização, a sociedade em que nascem, como acontece. Isso é uma maneira de ver mais interessante que a da Sociologia, que na sua origem tendeu a criar um fato social separado das interações individuais, nunca ficando muito claro o que seria tal “fato social”.

RH Quais são os principais problemas nessa aproximação com outras áreas?
CFC Ao se apossar da Antropologia, o historiador deve ficar ciente de que não está fazendo Antropologia. O que ele está fazendo é uma história “antropologizante”, mais voltada para interações sociais vistas no detalhe. Outro problema é a confusão entre temas e estratégias. Por exemplo, a micro-história não é um tema, é uma estratégia, uma forma de recortar o objeto. História comparada também não é um tema, é um recorte: trabalhar com mais de um caso ao mesmo tempo e comparar parâmetros.

RH Mesmo alterando o foco, não se perde a noção do todo.
CFC Isso é o mais interessante: o diálogo entre micro e macro, como na escola italiana, com Carlo Ginzburg e Giovanni Levi. Essa aproximação com a Antropologia já dura várias décadas e talvez seja o aspecto mais novo e mais interessante da História nos últimos tempos, desde que feita adequadamente. Meu último curso na UFF, de extensão, chamou-se “Antropologia para Historiadores”. Não acredito na interdisciplinaridade, e sim na transdisciplinaridade. Ou seja: trazer conteúdo de uma disciplina para outra, segundo as lógicas desta outra que recebe.

RH E qual é a lógica do historiador?
CFC O historiador é profundamente empirista. Ele tem preocupação com a fonte, com o dado, com o fato, com o processo. Quando você pergunta a alguém o que está estudando em História, recebe uma resposta do tipo: “Ah, eu estou estudando a Revolta da Vacina”. Uma coisa bastante definida no tempo, um processo delimitado. O antropólogo pode se interessar, por exemplo, por campesinato ou religião de modo geral, seja na Nova Guiné, na América Latina ou no Caribe. Um historiador só se sente seguro se o que ele disser for apoiado em grande quantidade de documentação. Por isso tem dificuldade em generalizar.

RH O discurso historiográfico se transformou nas últimas décadas?
CFC O mundo deu uma guinada no período de 1955 a 1965. Uma série de transformações se tornou visível nessa década, a começar pela reconfiguração do mercado de trabalho e por uma urbanização muito radical. A História não dava mais conta da vida que as pessoas de fato viviam. As relações sociais tradicionais e os pontos de referência, como casamento, família, sindicato, partido e nação estavam se desgastando muito rapidamente. O movimento francês ocorrido em maio de 1968 e outros ocorridos no mesmo ano em várias partes do mundo eram a manifestação de um mal-estar diferente. Mudaram as relações pessoais, e havia certa insegurança em matéria ética também. As pessoas talvez não soubessem muito bem o que andava mal, o que as incomodava. Nas últimas décadas, a sociedade não mudou só de etapa; ela se tornou radicalmente outra. Por isso é que hoje em dia se procuram novas maneiras de chamá-la. “Sociedade da informação”, não é isso? Ou coisas assim. Porque, de fato, os parâmetros antigos se aplicam mal. Daí a tal “História em migalhas”, dividida em um número muito grande de perspectivas, de planos, de objetos, de maneiras de trabalhar. As respostas ainda são parciais. Há muitas lacunas.

RH Alguma solução à vista?
CFC Edgard Morin tem um livro chamado Para sair do século XX, em que defende a ideia de juntar todas as perspectivas já propostas em uma só. O que é impossível, não é? E não é desejado. Eu acredito que a gente tenha mais perguntas do que respostas. Os grandes objetos construídos nos paradigmas de antes vão perdendo força, fossem eles quais fossem: marxista, weberiano ou o que quiserem, simplesmente porque o objeto mesmo – as sociedades humanas – mudou.

RH Como surgiu seu interesse pela História?
CFC Eu comecei gostando de História Antiga, mais exatamente de egiptologia. Era adolescente, tinha 13 anos, e estava fascinado pelo Egito Antigo. Devo dizer que naquela mesma época eu também gostava muito de Astronomia e de insetos, especialmente as formigas. Além disso, fui músico profissional, tocava piano. Só abandonei a música como algo central quando já estava na faculdade, porque não aguentei levar as duas coisas. Tive que fazer uma opção.

RH Chegou a se arrepender em algum momento?
CFC  Não. Foi a opção certa. Eu era bom no piano, mas nunca seria de primeira linha. Em História, acho que pelo menos fui mais original.  Mas tive de convencer primeiro a minha família. Meu pai era filho de um farmacêutico do interior de Minas. Ele queria muito, com muita força, que eu fosse médico. Mas eu não tinha a menor vocação. A resistência de meu pai só cedeu às vésperas do vestibular, feito em 1962.

RH Como foi o período na universidade?
CFC Meu interesse era por História Antiga. No entanto, o catedrático de História Antiga, na atual UFRJ, era o Eremildo Luiz Vianna, o maior dedo-duro do Rio. Ele teria um papel direto naquela caça às bruxas de 1968, quando vários professores foram aposentados. Então, não havia a mínima condição de trabalhar com ele. Eu acabei sendo atraído pela História Moderna e Contemporânea e pela professora Maria Yedda Linhares. Trabalhei com ela até ir para a França no doutorado. Foi Maria Yedda quem me conseguiu a bolsa francesa, aliás, baixíssima. Vivi muito pobremente durante os quatro anos em que fiz o doutorado na França. Mas, é claro, havia a cidade universitária, excelentes bibliotecas e muitas atividades culturais gratuitas. Além disso, cheguei a Paris poucos meses antes de maio de 1968. Portanto, vivi o episódio lá, o que para um historiador foi uma experiência muito interessante. Isso, por um lado, confirmou por um tempo minha orientação para História Moderna. Minha tese foi sobre a Guiana Francesa no século XVIII.

RH E voltou logo ao Brasil?
CFC Queria voltar quando acabasse o doutorado, mas o mar não estava pra peixe. As pessoas diziam: “Não volte, fique por aí. Você foi arrolado em três Inquéritos Policiais Militares (IPMs) e será preso ao chegar aqui”. Usei esse período para cobrir o que eu via como uma deficiência muito grande, minha e em geral do Brasil, que era a falta de conhecimento de teoria e metodologia. Não é por acaso que o primeiro livro mais ou menos de importância que eu fizfoi sobre metodologia [Los métodos de la Historia, 1974], quando fui trabalhar na Costa Rica. Uma colaboração comHéctor Pérez Brignoli, que tinha sido meu colega na França. Voltei para o Brasil com a Anistia, em 1979, depois de ter trabalhado na Costa Rica e no México.

RH Voltou como professor de História da América?
CFC Sim, fui contratado para trabalhar na pós-graduação da UFF, que na época tinha as áreas de Brasil e América, então fiquei com História da América.Isso é outra concepção equivocada: separar a História em fatias.Diferenciar HistóriaGeral de História do Brasil. O que é “História Geral”? Ainda hoje, certos programas de pós-graduação separam História da América e História dos Estados Unidos. Os Estados Unidos estão onde? Em Marte? Misturam o critério cronológico com o geográfico de uma maneira absurda. Tem uma coisa meio moralista também de achar que o Brasil precisa ser prioritário de maneira absoluta e a História Geral só deve se envolver naquilo que for útil à História do Brasil. A maioria das pessoas pensa que essa é uma posição de esquerda, mas não: isso nasceu com o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Nasceu de uma concepção nacionalista romântica de século XIX. Então, Idade Média tudo bem, mas só o final dela. Portugal no século XIV e XV, sim. Alta Idade Média, não. Não estou negando a importância da História do Brasil; acho correto esse compromisso. O problema é o exclusivismo. A história humana é uma coisa só.

RH Sua escolha da História Antiga, então, deve ter causado estranheza.
CFC Desde a época de estudante, havia certo tipo de pessoa que dizia que era um absurdo fazer Antiga e Medieval no Brasil: “Não houve aqui História Antiga, nem houve Medieval, portanto, não há museus importantes, não há sítios arqueológicos, não há uma vivência desse tipo de passado”. Em 1981, dois anos depois que voltei ao Brasil, houve uma lei que permitia às pessoas entrarem para o quadro universitário sem concurso. Os que, como eu, já estivessem lá por contrato, poderiam escolher a área. Eu escolhi Antiga e Medieval. As pessoas ficaram estarrecidas. Não conheciam minha trajetória.

RH Como se encontra o Egito Antigo em nossos museus e universidades?
CFC  A melhor coleção da América Latina é a do Museu Nacional, no Rio de Janeiro. Mas não é lá grandes coisas. É uma coleção em boa parte descontextualizada. A maioria das peças não tem indicação de procedência; nem sempre há uma cronologia bem estabelecida. E, para meus próprios interesses de pesquisa, tem pouco a oferecer, porque predominam as peças de períodos muito tardios. Outro problema para quem atua na área é a aprendizagem da língua. Nos Estados Unidos e na Europa ainda é possível estudar latim ou grego com certa facilidade. No Brasil, é difícil. Imagine egípcio.

RH O senhor chegou a ensinar o idioma?
CFC Ensinei durante muitos anos, de 1989 até me aposentar, este ano. Fui o único a dar esse curso durante muito tempo. Atualmente, ele também é dado no Museu Nacional. Este é um problema que não existe somente no Brasil. O interesse pela egiptologia caiu bastante, ou, mais exatamente, a decisão, de parte dos governos, de subvencionar adequadamente o setor: na França, por exemplo, o número de cátedras de egiptologia foi sendo cortado, e hoje é a metade do que chegou a ser. A novidade é que o campo tem crescido muito no próprio Egito: antes, os egiptólogos egípcios eram todos formados na Europa; agora, muitos são formados lá mesmo.

RH Eles também têm controlado mais os seus sítios arqueológicos?
CFC  Sim. Os egípcios têm evitado as saídas de peças.  Hoje é muito mais difícil exportar peças do Egito. Mas a reivindicação do retorno de algumas obras que estão nos Estados Unidos ou na Europa ainda não foi atendida. E dificilmente será. Ou vocês acham mesmo que Berlim vai devolver o busto de Nefertiti? Ou, analogamente, que o Museu Britânico vai abrir mão dos mármores do Paternon para a Grécia?

RH Como o senhor se inseriu na historiografia brasileira na década de 1970?
CFC Os modelos usados no Rio eram diferentes dos de São Paulo. O professor Nelson Werneck Sodré, por exemplo, nunca teve grande influência em São Paulo, embora no Rio ele tenha sido uma figura destacada. Aquelas noções de um marxismo que via etapas universais, a ideia de uma unilinearidade dos modos de produção que levariam ao comunismo... Naturalmente, isto não me convencia, já que acreditava na multilinearidade da evolução. Eu me inseri nas discussões sobre os modos de produção na América Latina da época colonial por esse viés, como crítica de um marxismo quadrado, stalinista, fechado e unilinear.

 RH Era uma forma de superar a crítica às ideias de Caio Prado Jr. e Celso Furtado?
CFC Eles eram bastante influentes, defendiam a ideia de que o essencial na nossa trajetória foi a extração de excedente e as relações comercias com a Europa. A América Latina como quintal da Europa, o Brasil servindo a uma lógica europeia de acumulação. Eu sempre achei que na América Latina, mal ou bem, havia sociedades, e não quintais. A escravidão, para mim, não era um campo de concentração, em que escravos inermes estavam à mercê de senhores cruéis. Eu via aquilo como uma sociedade onde o negro se inseria, negociava. O mais importante era dizer: “Nós temos na América colonial sociedades com uma lógica própria e que não necessariamente dependem tanto assim ou tão totalmente do sistema atlântico de comércio”. Acho que minha maior contribuição neste sentido foi a tese sobre a Guiana Francesa. Quando comecei esses estudos, não havia tantos conhecimentos e pesquisas concretas sobre o tema.Nas notas, eu comparava sistematicamente a Guiana com o Brasil, com as Antilhas, com o sul dos Estados Unidos e com as outras sociedades escravistas da América. As pessoas tomavam muito ao pé da letra a questão do modo de produção escravista colonial como tal, e isso não era o mais importante para mim. As classes dominantes coloniais nem sempre perdiam nos embates com as metrópoles enfraquecidas dos séculos XVII e XVIII, não é? As classes dominantes daqui ganhavam certas coisas, conquistavam certas coisas.

RH Por que o senhor deixou a História da América de lado?
CFC  Ainda leio, tenho interesse pelo assunto, mas não participo mais dessa discussão. Eu posso ser uma exceção no sentido de que eu mudo muito de assunto. De vez em quando eu quero sair do assunto em que estou trabalhando e trabalhar em outra coisa.

RH Essa postura é malvista no meio?
CFC Não tenho a menor ideia, e também não me importa. Sem dúvida, eu sou minoritário em minhas posições hoje em dia. Continuo muito marxista em muitas coisas, e o marxismo está fora de moda há décadas, não é isso? Não me importa, porque não é por aí que vou escolher o que eu faço, o que eu acho.Eu sou uma pessoa de briga. Sempre procurei a polêmica [risos]. Alguns debates foram bastante árduos. Acabei criando inimigos, até porque na América Latina as pessoas têm o hábito de achar que ser criticado significa ser atacado pessoalmente. O debate acadêmico é necessário para que a ciência avance, mas no Brasil há uma personalização muito grande das críticas.

RH Quais são os seus combates atuais?
CFC Nossa historiografia está voltada para duas coisas que costumo combater: a nova história cultural e o pós-modernismo, nessa ordem. Até porque o pós-modernismo não é lá muito importante no Brasil, ao contrário dessa nova história cultural. Ela insiste na importância do cultural e no fato de que a cultura não é gerada diretamente pelo econômico ou pelas estruturas. Para mim, o cultural tem uma base social. Não faz sentido estudar a cultura sem ver essa base social. E tem o extremo do pós-modernismo: dizer que não há nenhuma verdade, apenas versões. O professor [Francisco José Calazans] Falcon escreveu várias vezes que o historiador, por mais vociferante que seja nessa afirmação da inexistência de verdades, sempre acha que o seu tema existe [risos]. Os pós-modernos não fazem desconstrução de si mesmos, só dos outros. Mas o que mais me incomoda é uma historiografia que não se mostra muito preocupada com o mundo ao qual pertence. Numa época de globalização, por exemplo, valorizam-se não a economia ou as estruturas sociais, como seria de se esperar, mas sim aspectos subjetivos e culturais.

Verbetes
Jon Elster
Filósofo norueguês, professor de Racionalidade e Ciências Sociais no Collège de France desde 2006. Para entender a política e a sociedade de uma determinada época, ele parte das motivações das ações individuais e suas relações.
Pierre Bourdieu (1930-2002)
Sociólogo francês, discutiu em suas obras temas como educação, cultura, arte e política, utilizando métodos de várias disciplinas. Estudou particularmente os mecanismos sociais que estão por trás das diversas formas de dominação.
Carlo Ginzburg
Historiador italiano conhecido mundialmente por seus estudos no campo da micro-história, nos quais aborda especialmente a relação entre religiosidades e Inquisição. Entre seus estudos mais famosos está O queijo e os vermes(1976).
Giovanni Levi
Historiador italiano, participou da criação da micro-história como método de análise, especialmente dos sistemas econômicos e suas redes sociais. Seu trabalho mais conhecido é A Herança Imaterial, publicado na Itália em 1985.
Maio de 1968 na França
Símbolo de uma década de transformações nos valores sociais marcadas, sobretudo, por movimentos e protestos estudantis. A Guerra do Vietnã, a desigualdade dos direitos civis e os tabus sexuais foram temas recorrentes e deram início a uma volumosa produção intelectual nos campos da Arte, da Filosofia e da História.  
Edgar Morin
Sociólogo francês, conhecido por seus estudos sobre inter e transdisciplinaridade. Em O Método– seis volumes publicados entre 1977 e 2004 –, apresenta sua crítica ao modelo de pensamento das sociedades “desenvolvidas” baseado na determinação causal e no tempo linear.
Nelson Werneck Sodré (1911-1999)
Nascido no Rio de Janeiro, foi militar do Exército e historiador de orientação marxista. Autor, entre outros livros, deCapitalismo e Revolução Burguesa no Brasil (1990).
Francisco José Calazans Falcon
Historiador nascido no Rio de Janeiro, participou do estabelecimento do ofício de historiador nas universidades brasileiras. Seu livro A época pombalina (1982) é referência central sobre o governo do marquês de Pombal (1750-77).

Obras do autor
Agricultura, Escravidão e Capitalismo. Petrópolis: Vozes, 1979.
Uma introdução à História. São Paulo: Brasiliense, 1981.
O Egito Antigo. São Paulo: Brasiliense, 1982.
Domínios da História. Rio de Janeiro: Campus, 1997 (org.).
A ficção científica, imaginário do mundo contemporâneo: uma introdução ao gênero. Niterói: Vício de Leitura, 2003.
Um historiador fala de teoria e metodologia: Ensaios. Bauru: Edusc, 2005.

sexta-feira, 28 de junho de 2013

A nova tradução de “O capital”

Por Ricardo Musse
Momento alto do projeto de publicar as principais obras de Karl Marx e Friedrich Engels, a Boitempo apresenta, finalmente, o primeiro volume de O capital. A versão coube a Rubens Enderle, também responsável por outros volumes da série, entre eles, A ideologia alemã.
Trata-se da terceira tradução brasileira de O capital. O leitor dispõe, com isso, da possibilidade de confrontar diferentes soluções para conceitos clássicos (“mais-valia” nesta edição tornou-se “mais-valor”) e para passagens de difícil tradução.
Marx interessou-se pela economia política desde o início da década de 1840, data de suas primeiras anotações sobre o tema. O livro projetado de crítica daquela que constituía então a principal vertente do pensamento burguês foi postergado várias vezes. O avanço de suas pesquisas pode ser acompanhado em outros trabalhos: a crítica a Proudhon, em Miséria da filosofia (1847), e no Manifesto Comunista(1848).
Após a derrota da Revolução de 1848, na Alemanha e na França, Marx exila-se em Londres, cidade na qual passou o resto de sua vida. Dedica-se desde então integralmente ao projeto de “crítica da economia política”, premissa da compreensão da sociedade capitalista. A primeira versão desse trabalho, o manuscrito conhecido como Grundisse e publicado apenas em 1939, foi concluída em 1857-1858.
A primeira edição de O capital (reformulada significativamente quatro anos depois, por ocasião da segunda edição) saiu apenas em 1863. Nesses cinco anos, além de escrever os cadernos publicados postumamente como Teorias da mais-valia, Marx concentrou-se sobretudo na questão da exposição de sua pesquisa. A precisão formal do livro 1 de O capital (talvez o volume mais bem concebido da história) soluciona problemas de difícil encaminhamento.
Marx almejava uma redação de fácil apreensão, clara, límpida, que não afugentasse os principais destinatários do livro, os trabalhadores europeus. A principal dificuldade, no entanto, dizia respeito à necessidade de, sem prescindir do relato da gênese, não se limitar a uma exposição da história do capitalismo. A atualidade do livro assenta-se precisamente nessa combinação que faz com que O capital seja essencial a quem quer estudar o desenrolar histórico do capitalismo, mas não pode ser confundido com uma mero relato do processo de produção do capital.
O que torna o livro mais que uma história do capitalismo (cuja validade não teria como ir além da segunda metade do século XIX) é seu arcabouço conceitual: uma série de categorias e tendências cujos desenvolvimentos podem ser acompanhados e atualizados para o presente histórico. Na descrição do processo de acumulação do capital, Marx, por exemplo, aponta para a tendência à concentração e à centralização do capital que explica o recente predomínio globalizado das grandes corporações.
Para ele, a troca mercantil determina não apenas as relações econômicas e jurídicas, mas a própria sociabilidade no capitalismo. A compreensão dos desdobramentos políticos e culturais dessa sociedade não pode ignorar o fenômeno do “fetichismo da mercadoria”, que estrutura tanto a objetividade das relações econômicas e sociais como a própria configuração da ciência e da consciência em geral.
O acompanhamento teórico do fenômeno do fetichismo não descuida da elucidação das condições que o desvelam. Em suas diferentes manifestações, no dinheiro, no capital, na esfera da circulção, no âmbito da produção etc o fetichismo tem por avesso a situação de crise, de tal modo que não é inadequado considerar que o roteiro da crise (econômica, social, política, cultural) é moldado por uma intensificação do fetichismo que, por sua vez, escancara as contradições do capitalismo.
As classes, o conjunto dos trabalhadores e dos capitalistas, e com elas a figura do Estado entram em cena apenas no capítulo VIII, no qual quando Marx aborda a duração da jornada de trabalho. Essa, no entanto, é apenas a ponta do iceberg de um conflito social insolúvel que gira em torno do destino da mais-valia, pauta ainda hoje prioritária da luta de classes e das demandas por novos direitos sociais.
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Ricardo Musse é professor no departamento de sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo. Doutor em filosofia pela USP (1998) e mestre em filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1992). Atualmente, integra o Laboratório de Estudos Marxistas da USP (LEMARX-USP) e colabora para a revista Margem Esquerda: ensaios marxistas, publicação da Boitempo Editorial.

Após pressão, prefeitura volta atrás e cancela o corte de 40% de salários dos professores no Ceará


Carlos Madeiro
Do UOL, em Maceió


Menos de um mês após tirar dos professores  da rede municipal uma gratificação que corresponderia a 40% dos salários, a prefeitura de Juazeiro do Norte (a 548 km de Fortaleza) não resistiu à pressão popular e voltou atrás. 

Nesta sexta-feira (28), após reunião com a categoria e o MP-CE (Ministério Público do Ceará), a prefeitura anunciou a recomposição dos salários, na forma como era anteriormente. 
"Nós assinamos um TAC (Termo de Ajustamento de Conduta) com o MP, e vamos encaminhar uma nova uma mensagem ao Legislativo para algumas alterações do plano", disse a procurador do município, Mariana Gurgel, que representou a prefeitura no encontro.
Segundo ela, com o TAC, os 40% de gratificação volta aos vencimentos dos professores. "Na verdade nunca houve desconto. "Nós tínhamos incorporado 10% da gratificação aos salários. Com essa nova mudança, permanecerá os 40% de gratificação à regência para professores em sala de aula ou do suporte pedagógico. Os professores de área administrativo não receberão", disse. 
Com a decisão, os professores também decidiram encerrar a greve que durou 17 dias. As aulas devem voltar à normalidade na próxima segunda-feira (1).

O corte

Os professores da rede municipal de Juazeiro do Norte tiveram seus salários reduzidos em até 40%, aumento na carga horária, além de outras mudanças regidas no PCCR (Plano de Cargos, Carreira e Remuneração), aprovado no último dia 6 pela Câmara de Vereadores. 
A sessão foi marcada por protestos dos professores. Após a aprovação, houve uma comoção municipal e foi criado um movimento pedindo a recomposição salarial dos professores.

quinta-feira, 27 de junho de 2013

Médicos cubanos no Brasil?

Por Frei Betto

Tanto em Portugal quanto na Espanha, como em qualquer outro país, existem médicos de nível técnico bom. A Espanha possui o 7º melhor sistema de saúde pública do mundo e Portugal o 12º. Em Portugal 10% dos médicos são provenientes de outros países, incluindo os cubanos que foram incorporados a partir de 2009. Esses médicos foram submetidos a exames e a ampla maioria foi aprovada, o que levou as autoridades portuguesas a renovar sua estadia até 2012.

Ninguém se opõe a que o Conselho Federal de Medicina (CFM) submeta os médicos cubanos a um exame (para revalidação do diploma), como se faz com os brasileiros, muitos deles formados em faculdades privadas que funcionam como autênticas fábricas de fazer dinheiro. O CFM reclama de uma suposta revalidação automática dos diplomas dos médicos cubanos. Em nenhum momento o Governo fez essa proposta. O ministro da Saúde, Alexandre Padilha, deixou claro que pretende seguir os critérios de igualdade e de responsabilidade profissional. A opinião do CFM importa menos que a dos habitantes do interior e das periferias de nosso país, que tanto necessitam de atenção médica.

Segundo estudos promovidos pelo próprio CFM, em conjunto com o Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp), sobre a “Demografia médica no Brasil”  fica demonstrado que em 2011 o país dispunha de 1,8 médicos para cada mil habitantes. Sendo assim teríamos que aguardar até 2021 para que o índice chegue a 2,51 por mil. Segundo os cálculos somente em 2050 teríamos 4,3 por mil. Em Cuba há 6,4 médicos por mil habitantes e na Argentina, em 2005, já se contava com mais de três por mil, índice que o Brasil somente alcançará em 2031. Dos 372 mil médicos registrados no Brasil em 2011, 209 mil se concentram nas regiões Sul e Sudeste e pouco mais de 15 mil na região Norte.

O Governo Federal está empenhado em melhorar essa distribuição de profissionais de saúde através do Programa de Valorização do Profissional de Atenção Básica (Provab), oferecendo um salário inicial de mais de três mil dólares e plano de carreira para incentivar a que os médicos prestem serviços de Atenção Primária a população de 1.407 municípios em todo o país. Já se inscreveram mais de quatro mil médicos.

O senador Cristovam Buarque propõe que os médicos formados nas universidades públicas e que tiveram sua formação paga com o dinheiro do povo, trabalhem dois anos em áreas carentes de serviços médicos para que seus diplomas possam ser reconhecidos plenamente.

Se a medicina cubana  fosse de má qualidade como se explicaria que, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), os índices de saúde na ilha estejam muito melhores que os do Brasil, podendo ser comparados com os dos Estados Unidos?

No Brasil, antes de se reclamar de medidas que beneficiarão o povo mais pobre, as pessoas deveriam examinar a situação do país. Segundo os dados da OMS (de 2011) o melhor sistema público de saúde do mundo é o da França. Os Estados Unidos ocupam a 37ª posição. Cuba a 39ª. O Brasil a 125ª. Se os médicos cubanos não puderem vir o que essas pessoas e entidades que se posicionam contra dirão para o povo carente de atendimento de saúde de nossas periferias e do interior? Que trate de suportar suas dores? Que continue morrendo vitimado por enfermidades que podem ser tratadas com facilidade? Ou que espere que Deus faça o milagre da cura?


Cuba é especialista em Medicina Preventiva e exporta médicos para 70 países. Graças a essa solidariedade, a população do Haiti tem minorado o sofrimento causado pelo terremoto de 2010. Enquanto o Brasil enviou tropas para garantir a segurança, Cuba enviou para o Haiti médicos treinados para atuar em condições precárias e situações de emergência.

Os médicos cubanos não virão para o Brasil trabalhar com ressonância magnética ou medicina nuclear, mas para combater as parasitoses, a diarreia e a desidratação, reduzindo a mortalidade infantil e materna, aplicando vacinas e ensinado medidas preventivas e normas de higiene.

A prestigiosa revista New England Journal of Medicine, em sua edição de 24 de janeiro desse ano, elogiou a medicina que é feita em Cuba, por ter alcançado as mais elevadas cotas de vacinação do mundo, “porque o sistema de saúde cubano não foi projetado para que o consumidor faça escolhas ou para iniciativas individuais”. Em outras palavras, não são os interesses do mercado que são privilegiados, mas sim os interesses da cidadania.

Por que o CFM nunca reclamou do excelente trabalho que vem sendo desenvolvido  em nosso país pela Pastoral da Criança, que dispõe de poucos recursos e trabalha com mães que recebem uma formação ligeira? A resposta é simples: é bom para a medicina cada vez mais mercantilizada, voltada para o lucro e não para a saúde, contar com o trabalho altruísta da Pastoral da Criança. O temor é encarar  a competência dos médicos vindos do exterior.

Se Deus quiser um dia o Brasil poderá expor nos muros de suas cidades uma frase que li em uma rua de Havana: “ Cada ano morrem 80 mil crianças em todo o mundo por causa de enfermidades facilmente tratáveis. Nenhuma dessas crianças é cubana”.

Publicado no periódico La República (Montevidéu, Uruguai) – 26/05/2013

FONTE: SISEJUFE

Pode ser a gota d’água: enfrentar a direita avançando a luta socialista

Por Mauro Iasi
O mundo se move sob nossos pés, as velhas formas se rompem, surgem novas e as contradições que se acumulavam explodem buscando o caminho necessário, encontrando sua forma de expressão.
A explosão social que abalou o país brotou do terreno escondido das contradições. Lá para onde se costuma exilar as contradições incômodas: a miséria, a dissidência, a alteridade, a feiura, a violência. Germinaram no terreno do invisível, escondido e escamoteado pela neblina ideológica e o marketing cosmético que epidermicamente encobre a carne pobre da ordem capitalista com grossas camadas de justificativa hipócrita, de cinismo laudatório de uma sociabilidade moribunda.
As autoridades, os especialistas, sociólogos, politicólogos e jornalistas estão perdidos dando razão à dissertativa atribuída a Marx segundo a qual “a história só surpreende quem de história nada entende”. Declamam seu espanto querendo acreditar na extrema novidade, pois só isto explicaria sua brutal ignorância. No terreno da história nada é absolutamente novo.
Se há algo que é muito conhecido para quem não se limita ao presentismo – ou, foucaultianamente, à álea singular do acontecimento – é a insurreição, a explosão de massas. Caso tenham preconceitos contra nossa tradição marxista e se recusem a ler as brilhantes análises de Lênin em Os ensinamentos da insurreição de Moscou, ou de Trotski em A arte da insurreição, pode se remeter aos estudos de Freud em A psicologia de massas e análise do eu, ou a magistral análise de Sartre em A critica da razão dialética.
As massas explodem em uma dinâmica que altera profundamente o comportamento dos indivíduos isolados que pacificamente se dirigiam diariamente ao matadouro do capital, em ordem, pacificamente, saindo de suas casas humildes, pegando ônibus superlotados e precários, sendo humilhados pela polícia, vivendo de seus pequenos salários, vendo a orgia ostensiva do consumo e tendo que “subviver” com o que não tem.
Os jovens do Movimento Passe Livre (MPL) estão de parabéns por uma luta que não vem de agora (lembremos de Goiânia e Florianópolis) e por conseguir dar consistência a esta luta e ao confronto que os levou a dobrar a prepotência dos que afirmavam de início que a tarifa não seria rebaixada. As manifestações contra o aumento da passagem, no entanto, são apenas o desencadeador de algo muito maior. O movimento funcionou como um catalisador de um profundo descontentamento que estava soterrado pela propaganda oficial.
Analisemos, então, as determinações mais profundas que se apresentam nesta explosão social.
Em primeiro lugar as manifestações expressam um descontentamento que germinava e que era alimentado pela ação que queria negá-lo, isto é, pela arrogância de um discurso oficial que insistia em afirmar que tudo ia bem: a economia estava bem, não porque garantia a produção e reprodução da vida, mas porque permitia a reprodução do capital com taxas de lucros aceitáveis, o Brasil escapara do pior da crise internacional a golpes de pesados subsídios às empresas monopolistas, a inflação estava “dentro da meta”, o Brasil recebia eventos esportivos e se transformava em um canteiro de obras, os trabalhadores apassivados e suas entidades amortecidas pelo transformismo e pela democracia de cooptação se rendiam ao consumo via endividamento, o governo se regozijava com índices de aceitação que pareciam sólidos.
Acontece aqui um velho e conhecido fenômeno. A vida real não combina com o discurso ideológico. A inflação dentro da meta explodia na hora das compras, de pagar o aluguel, de pagar as contas, de pegar um ônibus. As delícias do consumo voltavam na forma de dívidas impagáveis. O acesso ao ensino vira o pesadelo da falta de condições de permanência. O emprego desejado se transforma em doença ocupacional. O orgulho de receber eventos esportivos internacionais se apresenta na farra do boi de gastos enquanto a educação, a saúde, a moradia, os transportes ficam às moscas.
O estopim foi o aumento das passagens, e aqui se apresenta um elemento altamente esclarecedor. Nas primeiras experiências de governos municipais do PT o enfrentamento da questão do transporte se deu através da municipalização deste serviço. Em São Paulo chegou-se a falar em tarifa zero no governo de Erundina. Em uma segunda geração de governos petistas, todas as empresas municipais foram devolvidas aos empresários que exploravam o setor (e explorar é um termo preciso). Coincidentemente os empresários do transporte se tornaram uma das principais fontes de financiamento das campanhas deste partido.
Entendendo que a explosão é perfeitamente compreensível como forma de manifestação de um profundo descontentamento, sabemos que é mais do que isto. Representa, também, o esgotamento de uma forma que tem sido muito eficaz de domínio e controle político. Cultivamos um fetiche pela forma democrática como se ela em si mesmo fosse a solução enfim encontrada pela humanidade para superar um dilema histórico da ordem burguesa que a acompanha desde o nascimento e que não tem solução dentro da sociedade capitalista: o abismo entre sociedade e Estado.
A sociedade se representa através de políticos eleitos que formam as esferas decisórias, legislativas ou executivas, por meio do voto que transfere o poder para um conjunto de pessoas que supostamente expressam as diferentes posições e interesses existentes na sociedade. Abstrai-se, desta forma, o quanto os reais interesses políticos e econômicos em jogo deformam esta suposta límpida representação resultando na consagração do poder das classes dominantes, confirmando a dura descrição de Montesquieu segundo a qual “a República é uma presa; e sua força não passa do poder de alguns cidadãos e da licença de todos”, ou na ainda mais incisiva afirmação de Marx (e depois de Lênin): a democracia é o direito dos explorados escolher a cada quatro anos quem os representará e esmagará no governo.
Desta maneira é compreensível o espanto daqueles que acreditavam que estava tudo bem em uma sociedade marcada pelas contradições da forma capitalista e de sua expressão política, ignorando as profundas e conhecidas contradições que tal ordem gera inevitavelmente.
Uma contradição, no entanto, encontra sempre uma forma particular para se expressar. A forma como se expressaram as contradições descritas também é perfeitamente compreensível.
O último período político foi marcado por uma profunda despolitização dos movimentos sociais e dos movimentos reivindicativos da classe trabalhadora. Em dez anos de governo os trabalhadores não foram uma vez sequer chamados a participar ativa e independentemente da correlação de forças políticas em defesa de seus interesses e no terreno que lhe é próprio: as ruas, as praças, a cidade. Optou-se por uma governabilidade sustentada por alianças de cúpula nos limites da ordem política existente e do presidencialismo de coalizão, mantendo seus métodos, isto é, oferta de cargos, liberação de verbas e facilidades. Não é de se estranhar que em dez anos não se tenha implementado uma reforma política.
Em nenhum momento no qual uma demanda das massas trabalhadoras (reforma agrária, previdência, direitos trabalhistas, garantia de serviços públicos, etc.) que se chocava com a resistência dos setores conservadores foi resolvida chamando os trabalhadores a se manifestar e inverter a correlação de forças desfavorável às mudanças. Pelo contrário, via de regra, as soluções conservadoras foram propostas pelo governo que se pretendia popular e se pedia às massas que se calassem e dessem, como prova de sua infinita paciência, mais um voto de confiança em suas lideranças que deles se alienavam.
Quando os trabalhadores se chocam com a orientação governista, como na última greve dos professores e dos funcionários públicos federais, são tratados com arrogância e prepotência.
Por isso, não nos espanta que a explosão social se dê da forma como se deu e traga os elementos contraditórios que expressa: despolitizada e sem direção, ainda que com alvos precisamente definidos: os governos e aquilo que representa a ordem estabelecida.
A despolitização se expressa de varias formas, mas duas delas se apresentam com mais evidentes: violência e antipartidarismo. Comecemos pela violência.
Quanto à forma violenta que tanto espanta os ardorosos defensores da ordem temos que constatar que ela não é homogênea. Há pelo menos três vertentes da violência. Uma delas, difusa e desorganizada, é aquela que expressa a raiva e o ódio contra uma ordem que oprime, não por acaso esta se dirige contra as expressões desta ordem, seja os prédios públicos que abrigam as instituições da ordem política burguesa (sedes de governo, parlamentos, prédios do judiciário, etc.), mas também os monopólios da imprensa, da televisão, assim como os templos do consumo ostensivo. Esta manifestação é compreensível e até, em certa medida, justificada. Marx e Engels, ao analisar a situação alemã de 1850 dizem a respeito:
“Os operários não só não devem opor-se aos chamados excessos, aos atos de vingança popular contra indivíduos odiados ou contra edifícios públicos que o povo só possa relembrar com ódio, não somente devem admitir tais atos , mas assumir sua direção.”
[Mensagem do Comitê Central à Liga dos Comunistas]
Deixemos aos patéticos novos defensores da “ordem e da tranquilidade” a defesa do fetiche do patrimônio público, uma vez que é esta “ordem” é que tem garantido às classes dominantes e seus aliados de plantão a “tranquilidade” para saquear e depredar o verdadeiro patrimônio público.
Há uma segunda vertente da violência. Jovens das periferias, dos bairros pobres, das áreas para onde se expulsou os restos incômodos desta ordem de acumulação e concentração de riqueza, que são cotidianamente agredidos e violentados, estigmatizados, explorados e aviltados, que agora, aproveitando-se do mar revolto das manifestações expressam seu legítimo ódio contra esta sociedade hipócrita e de sua ordem de cemitérios. Sua forma violenta em saques e depredações assustam, é verdade, mas a consciência cínica de nossa época passou a assumir como normal as chacinas, a violência policial. Pseudointelectuais chegaram a justificar como normal que a polícia entre nas favelas e invada casas sem mandato, prenda, torture e mate em nome da “ordem”; ou seja, a violência só é aceitável contra pobres, contra bandidos, contra marginais, mas é inadmissível contra lixeiras, pontos de ônibus, bancos e vitrines.
Há uma terceira violência e esta não é espontânea e emocional como as duas primeiras: a extrema direita. Ela, lá dos esgotos para onde foi jogada pela história recente, se sentia também ofendida e agredida – evidente que não pela ordem burguesa e capitalista que sempre defendeu, mas pelo irrespirável ar democrático que acertava as contas com nosso passado tenebroso, como a denúncia contra o golpe de 1964 e seus sujeitos, com as comissões da verdade, mas sobretudo o mal estar desta extrema direta com um regime político que permite a organização dos trabalhadores e sua expressão, mesmo nos precários limites de uma democracia representativa de cooptação. Assim como os movimentos sociais e de classe se despolitizam, a direita também. Para a extrema direita não interessa que a atual forma política permita aos monopólios seus gigantescos lucros e à burguesia sua pornográfica concentração de riquezas. A burguesia que já se serviu da truculência para garantir as condições de acumulação de capital, hoje se serve da ordem e tranquilidade democrática para os mesmos fins e neste contexto não há função clara para seus antigos cães de guarda.
Estes não suportam nos ver andando com nossas camisetas que lembram nossos mártires, nossas bandeiras que recolhem o sangue de todos que lutaram, nossas firmes convicções que nos mantêm nas lutas diárias ao lado dos trabalhadores em defesa da vida, mas com o olhar certeiro no futuro necessário e urgente que supere a ordem do capital por uma alternativa socialista. Por isso nos atacam, usam das manifestações para acertar suas contas com a esquerda, de forma organizada, intencional e, certamente, com apoio formal ou informal dos aparatos de repressão.
A ação da extrema direita encontra respaldo na despolitização das massas, principalmente na expressão gritante do antipartidarismo. No entanto, neste caso temos que ter cautela ao analisar os fatos. O comportamento contra os partidos é compreensível, ainda que não justificado. Compreensível por dois motivos: as massas, graças à triste experiência petista, estão cansadas de partidos que usam as demandas populares para eleger seus vereadores, deputados e presidentes que depois voltam as costas para estas demandas para fazer seus jogos e alianças para manter em seus cargos; também, acertadamente, não podem aceitar que certos partidos pulem na frente de manifestações e movimentos para tentar dirigi-los sem a legitimidade de ter construído organicamente as lutas.
Tal atitude, portanto, compreensível, é injustificável pelo fato que ao mirar os partidos de esquerda erra pelo fato que foram os militantes dos partidos de esquerda e dos movimentos sociais que mantiveram no pior momento da correlação de força desfavorável as lutas entorno das demandas populares, por moradia, na luta pela terra, contra a reforma da previdência, contra as privatizações, em defesa da educação e da saúde públicas, contra os gastos com os eventos esportivos, contra as remoções. E o fizeram em um contexto em que as massas estavam submetidas a um profundo apassivamento e no qual o transformismo do PT em partido da ordem isolava a esquerda e a estigmatizava. Neste sentido os partidos de esquerda como o PCB, o PSTU, o PSOL e outras organizações de esquerda, assim como os movimentos sociais e sindicatos, não precisam pedir licença a ninguém para participar de lutas e manifestações sociais, conquistaram legitimamente este direito na luta, com sua coerência e compromisso.
Para onde vão as manifestações? Alguns ingenuamente, ou de forma interesseira, acreditam que a mera existência da ação independente de massas configura em si mesma um fator positivo de transformação. Infelizmente, a história também nos traz elementos para questionar esta tese. Alguns exemplos da história muito recente: muitos saudaram a derrocada do leste europeu advinda do desmonte da URSS como a possibilidade de uma revolução política que retomasse o rumo interrompido das experiências socialistas, mas o que vimos foi a restauração capitalista. Agora saúdam a chamada “primavera árabe”, mas o que temos visto, e a Líbia e o Egito são exemplos paradigmáticos, é o aproveitamento dos monopólios na partilha do botim de países estratégicos isolando mais uma vez os setores populares.
O sentido e futuro das manifestações estão em disputa e temo em dizer que a esquerda está perdendo esta disputa para um sentido perigosamente direitista e conservadorRecentemente afirmei que a experiência política do último período, ao contrário do que alguns esperavam, havia produzido um desmonte na consciência de classe e se expressava em uma virada conservadora no senso comum. Este processo ficou evidente nas manifestações, para além da intenção de seus originais promotores. O produto multifacetado das contradições mescla nas manifestações elementos de bom senso e senso comum, criticas difusas às manifestações mais evidentes da sociabilidade burguesa em que estamos inseridos ao lado de reafirmações de valores próprios desta mesma ordem, o que seria natural se entendermos o processo de despolitização descrito.
Quando os adeptos do espontaneísmo alardeiam a virtude de uma manifestação sem direção e que hostiliza partidos, esquecem-se de que se você não tem uma estratégia, não se preocupe, você faz parte da estratégia de alguém. Além da evidente eficiência dos monopólios da comunicação – o “partido da pena”, nos termos de Marx – em pautar o movimento selecionando as bandeiras que interessa à ordem (luta contra a corrupção, nacionalismo, diminuição de impostos, etc.), outros elementos muito perigosos se apresentam.
Um cartaz na manifestação no Rio dizia: se o povo precisar, as Forças Armadas estão prontas para ajudar. Significativamente os militantes antipartido não destruíram esta faixa, talvez porque não sabem que existe, além do partido da pena, o “partido da espada”. Em nota dos clubes militares da marinha, exército e aeronáutica, os militares afirmam que as manifestações expressam majoritariamente a indignação com o descaso das autoridades com as aspirações da sociedade e que diante da dos vícios e omissões que se repetem chegou a hora de se “manifestar clamorosamente” e não aceitar “ser conduzido, resignadamente, como grupo ingênuo” dando “um basta à impostura e à impunidade”. A nota dos militares termina com uma clara provocação e cita Vandré: “quem sabe faz a hora, não espera acontecer”.
A direita só germina e cresce no vazio deixado pela esquerda. A ilusão de um desenvolvimento capitalista capaz de resolver as demandas populares e garantir lucros aos capitalistas, sustentado por um governo de coalizão com a burguesia desarma os trabalhadores e a direita ocupa o terreno. Há um evidente cheiro de golpe no ar. A embaixadora dos EUA que estava na Nicarágua na época dos contras, na Bolívia quando da tentativa de dividir o pais, no Paraguai quando do golpe contra Lugo, chegou ao Brasil.
Ao prefaciar o livro de Leandro Konder sobre o fascismo republicado em 2009, dizia, alertando para a atualidade do risco desta alternativa contra aqueles que achavam que este fenômeno estaria condenado ao passado:
“Capital monopolista em crise, imperialismo, ofensiva anticomunista, criminalização dos movimentos sociais, decadência cultural, hegemonia da política pequeno-burguesa em detrimento da política revolucionária do proletariado, irracionalismo, neo-positivismo, misticismo, chauvinismos nacionalistas acompanhados ou não de racismo… Não se enganem. Só posso alertar, como certa vez fez Marx: ‘esta fábula trata de ti’.”
A explosão de massas deu o recado: "olha só meu coração, ele é um pote até aqui de mágoa, qualquer desatenção, faça não… pode ser a gota d’água".
Mauro Iasi é professor adjunto da Escola de Serviço Social da UFRJ, presidente da ADUFRJ, pesquisador do NEPEM (Núcleo de Estudos e Pesquisas Marxistas), do NEP 13 de Maio e membro do Comitê Central do PCB.