sexta-feira, 26 de outubro de 2012

Ser de esquerda e políticas de alianças


Por Atilio Boron

O que significa ser de esquerda na América Latina atual? Essa pergunta na verdade está aberta a múltiplas e contraditórias respostas. Para mim, o assunto é claro: ser de esquerda significa, mais que nada, adotar uma postura teórica e prática intransigentemente crítica do capitalismo e a favor de uma sociedade pós-capitalista, denominada socialista ou de transição, que esteja direcionada para a construção de uma sociedade não capitalista. E aqui notamos um problema grave: são poucos os partidos, mesmo aqueles ditos de esquerda – para não falar daqueles inscritos na camaleônica “centro-esquerda” –, que assumem claramente essa postura. E, por outra parte, entre aqueles que reivindicam tal postura, pouquíssimos detêm certa ressonância nas massas, uma base social que os transforme numa alternativa real de poder. Este é o grande problema. Muitas vezes, aquilo que na América Latina se apresenta por “esquerda” não passa de uma variante desbotada, descafeinada da “centro-esquerda”, que sob nenhuma hipótese pode ser confundida com uma esquerda genuína. Exemplos: Lula, Lagos, Bachelet, Tabaré Vázquez, Kirchner e tantos outros que nem remotamente reúnem as condições para serem considerados como políticos ou governantes de esquerda. Podem ter uma trajetória (como Lula) desvirtuada pelo presente ou uma retórica desvirtuada pelos fatos, como Kirchner, mas nada além disso. Enfim, como considerar de esquerda os governos da Concertación chilena, impassíveis diante do escandaloso aumento da desigualdade social naquele país?


Isso nos coloca diante de um conjunto de problemas, entre eles o seguinte: os partidos da esquerda “dura”, em geral bastante dogmáticos e sectários, fazem parte de um setor minoritário das nossas sociedades. O avanço da esquerda, portanto, requer necessariamente uma política de alianças, o que gera entre as forças políticas uma série de intermináveis debates muitas vezes paralisantes.


Por que uma política de alianças? Em primeiro lugar, porque uma minoria irrelevante simplesmente não consegue mudar o mundo. É preciso conquistar uma maioria social para então poder se lançar, responsavelmente, à tomada do poder. Entretanto, o que mais se escuta dentro dos partidos de esquerda é algo como: “Não, nós não nos aliamos com ninguém, mantemos a autonomia total do nosso partido.” Temos assim uma força de esquerda muito coerente, muito consistente, o que é de fato respeitável e válido, mas deveríamos nos perguntar sobre a possibilidade concreta, e não apenas imaginária, de uma força como esta fazer com que o processo histórico avance a partir da exaltação da própria pureza doutrinária, quando na verdade tal coisa se faz à custa de uma prática eficaz. Penso que é extremamente importante articular uma adequada política de alianças que não dilua o horizonte de esquerda, mas que também permita reunir alguma capacidade para incidir na conjuntura mediante uma renovada e ampliada habilidade de mobilizar o apoio de crescentes setores das classes subalternas. Do contrário, existe o risco de se ter uma esquerda “talmúdica”, muito rigorosa e ortodoxa em sua interpretação do dogma, mas que termina se convertendo numa espécie de seita meramente testemunhal e privada de toda potencialidade transformadora. Rosa Luxemburgo percebeu muito bem a gravidade dessa atuação de uma esquerda que não quer, ou melhor, que renuncia a mudar o mundo e que se ilude ao pensar que o salvará através do seu virginal testemunho.


É evidente que uma esquerda somente testemunhal não contribui para a causa da emancipação social dos nossos povos. Por outro lado, também não é de nenhuma ajuda uma esquerda oportunista, que se alia com qualquer grupo político e que aberta ou veladamente desiste de suas bandeiras de luta e desfigura sua própria identidade. O tema das alianças, portanto, não é simples. Mas a história demonstra que as forças de esquerda que conseguiram engendrar grandes transformações em suas sociedades – penso aqui nas experiências da Revolução Russa, da Revolução Chinesa, da Revolução Vietnamita e da Revolução Cubana – sempre o fizeram a partir da construção de uma sucessão de alianças que foram ampliando progressivamente sua gravitação social, política e ideológica. Eram forças que tinham claríssima consciência sobre quais eram seus objetivos finais e seus princípios irrenunciáveis, que nunca deveriam ser sacrificados com vistas a ocasionais vantagens proporcionadas por alguma possível aliança. O caso do Movimiento 26 de Julio, tal como Fidel Castro expôs em diversas ocasiões, é ilustrativo em relação a essa capacidade de unificar diferentes forças sociais a partir de uma direção estratégica, que paulatinamente impôs sua hegemonia e levou o conjunto das forças aliadas para a esquerda e para a luta pelo socialismo. Os ensinamentos da Revolução Russa, ou da Chinesa ou mesmo da Vietnamita, confirmam nosso argumento. O partido bolchevique não chega ao poder graças a algum tipo de ilustre solidão derivada de uma pureza doutrinária, mas sim pelo ajustamento e flexibilidade da política de alianças promovida por Lenin, em muitos casos contra a direção do partido. E o mesmo poderia ser dito sobre outras experiências revolucionárias.


O problema é que, na América Latina, muitas vezes as alianças acabaram diluindo os partidos de esquerda. Como construir atualmente uma alternativa de esquerda que não fique limitada ao plano doutrinário ou retórico e demonstre eficácia na esfera das políticas concretas? O que um partido de esquerda deve propor hoje em nossos países? Obviamente, não existe uma resposta única para essas questões. A Colômbia tem suas prioridades, entre elas uma é fundamental: a pacificação. Disso emana um certo tipo de alianças. Em outros países, a crise econômica é o problema mais urgente, o que dá lugar a outras possíveis coalizões, aglutinando forças opostas às políticas neoliberais. Conforme apontamos anteriormente, o que deve caracterizar um partido de esquerda é seu propósito de abolir o capitalismo. Nesse sentido, é preciso analisar e distinguir os passos concretos e imediatos, as alianças táticas e as alianças estratégicas para alcançar esse objetivo. Tais coalizões ou alianças constituem o centro da política, ainda que comumente seja este o ponto onde naufragam as melhores intenções. A revolução não é um ato único, pelo contrário, é a consumação final de uma série de iniciativas, que devem começar no aqui e agora da conjuntura. Um partido de esquerda deve saber que o combate ao capitalismo começa muito antes da revolução, e essa convicção deve ser o guia para a elaboração de uma política de alianças com forças afins, junto às quais poderá marchar até certo ponto, quando então deverá forjar novas alianças com outros sujeitos sociais dispostos a tomar as mesmas bandeiras e seguir a marcha. Apenas excepcionalmente é possível encontrar alianças políticas que perduraram ao longo de todo o caminho que vai da ascensão da luta de massas à consumação da revolução.


FONTE: BORON, Atilio. Aristóteles em Macondo: reflexões sobre poder, democracia e revolução na América Latina. Rio de Janeiro: Pão e Rosas, 2011, p. 101-105.

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