terça-feira, 1 de maio de 2012

A construção do consenso em torno do Primeiro de Maio: ocultamento do acirramento das relações trabalhistas



Por Marcos Cesar de Oliveira Pinheiro



"Dar nome às coisas é fundamental para ser alguém. (...) Nas coisas da política e da luta social, ninguém é nada se aceita o nome que dão à coisa, à sua coisa, os que mandam." (Francisco Fernández Buey) 


As classes dominantes jamais limitam suas iniciativas a apenas um terreno de luta; pelo contrário, sua batalha para conservar a ordem capitalista se dá em todas as frentes, em especial a repressão (velada ou escancarada). Por isso, a insistência dos intelectuais orgânicos e dos aparelhos hegemônicos da ordem capitalista na criação do senso comum de que o Primeiro de Maio é o Dia Internacional do Trabalho e não o Dia Internacional dos Trabalhadores não é mera questão de nomenclatura. Está inserida no êxito obtido pelo neoliberalismo na esfera ideológica; no revigoramento da tese de que o capitalismo e a democracia burguesa constituem o coroamento da história da humanidade – o “fim da história”.



No dizer de Mikhail Bakhtin, as palavras estão sempre carregadas de um conteúdo ou sentido ideológico ou vivencial (BAKHTIN, 2009, p. 99). A língua nunca é neutra. A linguagem é profundamente condicionada pelo momento histórico, pelas contradições sociais e pelos conflitos ideológicos – de classe, de gerações, de gênero, de grupos étnicos etc. (Cf. BAKHTIN, 2009; CARBONI e MAESTRI, 2005). Dia do Trabalho em vez de Dia dos Trabalhadores é muito mais conveniente ao triunfo dos mercados, da democracia liberal e da economia global. É tão notável o seu êxito ideológico que até mesmo organizações políticas de esquerda terminaram por adotar alguns temas e terminologias da agenda imposta pelos mercados.

A meu ver, o Dia Internacional do Trabalho, e não dos Trabalhadores, corrobora com os dispositivos ideológicos para justificar a existência de uma sociedade de classes. No que diz respeito ao papel reforçador de certas ideologias:

Aqui prevalece a ilusão da liberdade individual, ancorada no fetichismo da mercadoria e na opacidade dos mecanismos de exploração classista próprios de um regime baseado na “liberdade” do trabalho assalariado, o que dá lugar a novos mecanismos e estratégias de controle ideológico. Entre eles, sobressai a autoinculpação das classes populares. Desta forma, se os pobres não podem prosperar no capitalismo, isso se deveria aos vícios, às confusões das suas vontades, à preguiça, à pouca inteligência, ao gosto pelo álcool ou à vida desordenada, o que acabaria por inocentar o capitalismo de suas próprias consequências (BORON, 2011, p. 82).

Segundo Marilena Chaui, “a operação ideológica passa por dois ocultamentos: o da divisão social e o do exercício do poder por uma classe social sobre outra” (CHAUI, 2007, p. 39). Esses ocultamentos são obtidos através de uma prática e de um discurso coercitivos, ainda que a coerção não esteja imediatamente visível, uma vez que transformado em consenso invisível e interiorizado. A prática e o discurso dominantes se revestem de generalidade e de universalidade, buscando “criar em todos os membros da sociedade o sentimento de que fazem parte dela da mesma maneira e, que a contradição não existe, ou melhor, a contradição deve aparecer como simples diversidade ou como diferentes maneiras, igualmente legítimas, de participação” na sociedade (idem, p. 51-52). Anula-se e se oculta a realidade das classes, visto que as “classes laboriosas” e as “classes dirigentes” são apresentadas “apenas como variantes do cidadão e da pessoa, contidas em germe na natureza humana” (idem, p. 52).


A luta ideológica não é somente “batalhas das idéias”, uma vez que estas ideias possuem uma “estrutura material”, articula-se em “aparelhos” estabelecidos para a formação do consenso – ou dito de outra maneira, voltados para manter, defender e desenvolver a frente ideológica de uma classe dominante. Tudo o que influi ou pode influir sobre a opinião pública faz parte da estrutura ideológica: a imprensa, as bibliotecas, as escolas, associações de variado tipo, até a arquitetura, a disposição e o nome das ruas (LIGUORI, 2007, p. 90). Este conjunto de trincheiras e fortificações da classe dominante requer um complexo trabalho ideológico para gerar e transmitir um quadro de valores que legitima os interesses dominantes, fazendo incutir a ideia de que não há nenhuma alternativa à gestão da sociedade, “seja na forma ‘internalizada’ (isto é, pelos indivíduos devidamente ‘educados’ e aceitos) ou através de uma dominação estrutural e uma subordinação hierárquica e implacavelmente imposta” (MÉSZÁROS, 2008, p. 35).


O poder de uma classe dominante não é simplesmente o resultado de sua força econômica e política ou da distribuição da propriedade, ou das transformações econômicas, mas “pressupõe sempre um triunfo histórico no combate às classes subalternas” (LÖWY, 2005, p. 60). Na manutenção dos “de baixo” no seu devido lugar da estrutura hierárquica vigente. Exerce aqui o sistema de educação da sociedade sua função de preservar os “padrões civilizados” dos que são designados para “educar” e governar, contra “a anarquia e a subversão”. Trata-se de proclamar e difundir as vitórias e os sucessos alcançados pelas classes dominantes, de hoje e do passado, nos permanentes embates sociais travados ao longo do processo histórico. Nessa lógica de legitimação da ordem estabelecida como uma “ordem natural” supostamente inalterável, a história deve então ser reescrita e propagandeada de forma ainda mais distorcida pelos órgãos que em larga escala formam a opinião pública, como jornais de grande tiragem e as emissoras de rádio e de televisão, pelo sistema escolar e, também, pelas “supostamente objetivas teorias acadêmicas” (MÉSZÁROS, 2008, p. 37; PRESTES, 2010). Como diz Walter Benjamin, nem os mortos estão seguros diante do inimigo, se ele for vitorioso, e conclui que “esse inimigo não tem cessado de vencer” – tese VI de “Sobre o conceito de história” (apud LÖWY, 2005, p. 65) –, sendo os ideais e as lutas dos setores derrotados em seus propósitos revolucionários e transformadores esquecidos, silenciados, deturpados e combatidos (PRESTES, 2010, p. 94).


As classes dominantes sabem, conforme é apontado por Marta Harnecker, que “um povo sem memória é um povo sem futuro” e por isso mantêm-se empenhadas em desqualificar não somente as suas lideranças, “como também e, fundamentalmente, a memória da luta dos nossos povos” (HARNECKER, 2000, p. 70). O “triunfo histórico no combate às classes subalternas”, longe de ser um argumento para aquilo que Paulo Freire chamou de “pessimismo imobilizante”, mostra, na realidade, que “as classes sociais, o conflito de classes e a consciência de classe existem e desempenham um papel na história” (HOBASBAWM, 2000: p. 33). Se durante o processo de autorreprodução da sociedade existe a necessidade recorrente do falseamento e do silêncio referentes a numerosos acontecimentos que não são do interesse dos setores dominantes que sejam do conhecimento da grande maioria das pessoas e, em particular, das novas gerações (PRESTES, 2010, p. 94), isso significa que a hegemonia das classes dominantes nunca é absoluta, há sempre o risco do aparecimento de propostas libertadoras e de emancipação de homens e mulheres explorados, oprimidos e subordinados de uma sociedade dividida em classes.

Portanto, reafirmar o Primeiro de Maio como Dia Internacional dos Trabalhadores é não aceitar o consenso dominante, é se contrapor à hegemonia dos setores dominantes, é saber se situar na história da humanidade e no presente como protagonista na elaboração e na execução de uma alternativa de emancipação social, que, a meu ver, só poderá ser socialista. Porém, nas palavras de um grande revolucionário latino-americano, José Carlos Mariátegui, um socialismo que não seja “nem cópia nem decalque, mas sim criação heróica” do nosso povo.

Viva o Primeiro de Maio!!!

Viva o Dia Internacional dos Trabalhadores!!!





Referências bibliográficas

BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. 13 ed. São Paulo: Hucitec, 2009.

BORON, Atilio. Aristóteles em Macondo: reflexões sobre poder, democracia e revolução na América Latina. Rio de Janeiro: Pão e Rosas, 2011.

CARBONI, F. e MAESTRI, M. A linguagem escravizada: língua, história, poder e luta de classes. São Paulo: Expressão Popular, 2005.

CHAUI, Marilena. Cultura e Democracia: o discurso competente e outras falas. 12 ed. São Paulo: Cortez, 2007.

HARNECKER, Marta. Tornar possível o impossível: a esquerda no limiar do século XXI. São Paulo: Paz e Terra, 2000.

HOBSBAWM, E. Mundos do Trabalho. 3a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2000.

LIGUORI, Guido. Roteiros para Gramsci. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2007.

LÖWY, Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio – uma leitura das teses “Sobre o conceito de história”. São Paulo: Boitempo, 2005.

MÉSZÁROS, István. A educação para além do capital. 2 ed. São Paulo: Boitempo, 2008.

PRESTES, Anita Leocadia. “O historiador perante a História Oficial”. In: Germinal: Marxismo e Educação em Debate, Lodrina, v. 1, n. 2, p. 91-96, jan. 2010.

 

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