terça-feira, 13 de março de 2012

Polícia e repressão social: uma história que se repete


Por Francisco Carlos Teixeira (*)



Num recente show de rock da cantora e compositora Rita Lee, em Sergipe, a polícia local usou de métodos brutais contra a população, invadindo o espetáculo e espancando seus participantes. O fato, bem em frente do palco da cantora, provocou a interrupção do show e um forte, e debochado (como não poderia deixar de ser), protesto da artista. Presente no local, o governador do estado, membro de um partido de esquerda (o PT), não só se retirou “ofendido”, como apoiou os métodos de sua polícia e iniciou um processo contra a artista. Tal fato, apenas ilustrativo e sem maiores consequências, quando colocado ao lado de ações como a invasão da USP, do bairro popular de Pinheirinhos pela polícia paulista ou da repressão contra os protestos dos trabalhadores contra os trens urbanos do Rio de Janeiro pela polícia fluminense, merecem uma maior reflexão sobre as relações entre Estado de Direito e polícia.



Polícia e Rebeldia


 
A abordagem policial foi o estopim de grandes distúrbios, verdadeiros motins sociais, em eventos do tempo presente, como em Los Angeles em 1992, Paris em 2005 e agora em Londres e Mumbai em 2011. Sabemos muito bem, no Brasil, que não é raro que a abordagem policial de cidadãos seja grosseira e acompanhada, no mais das vezes, de atos de brutalidade. Sabemos também, com experiência própria, que protegida pelo poder público, e quando fora do campo de visão da mídia, a polícia viola sistematicamente os direitos civis de pretensos “suspeitos” [1]. Os últimos acontecimentos em Valência, Espanha, onde jovens e adolescentes foram tratados como inimigos do Estado pela polícia local ilustra o caráter anti-democrático e anti-social, quase demófobo, das polícias mesmo em Estados de Direito [2].



O que normalmente nos parece estranho é que casos semelhantes ocorram em democracias consolidadas com fortes instituições da sociedade civil em prontidão contra a violação dos direitos civis. Contudo, isso ocorre. Este foi o caso dos brutais incêndios e depredações decorrentes do espancamento de Rodney King, cidadão negro norte-americano que teria cometido uma infração de trânsito banal, por policiais brancos em Los Angeles em 1992. A originalidade neste caso consistiu na existência de câmaras de filmagem que comprovaram a brutal abordagem dos policiais brancos. Mesmo assim, todo o aparato policial de Los Angeles foi colocado, nos dias dias seguintes, em busca de algum (ou qualquer) ato pregresso da vida do senhor King que pudesse legitimar a violência polical. Tais atos de brutalidade policial ocorrem muito facilmente nos interstícios das comunidades multiétnicas, como em Los Angeles em 1992 [3].



Nestas comunidades – para além de Los Angeles, como Rio, Paris, Londres -, atingidas brutalmente pelo desemprego e pelos cortes dos ante-paros sociais em face da crise econômica, a atuação da polícia é um elemento chave para a compreensão das explosões de cólera juvenil. De forma preferencial a polícia – em Los Angeles, Paris, Londres, Nova York ou Rio de Janeiro – atua através de abordagens padronizadas baseadas em um “retrato social” de pretensos suspeitos altamente preconceituoso, que criminalizam a priori a pobreza e a cor ou etnia dos cidadãos. Os “negros ou mestiços”, ou aqueles com aparência de imigrantes “pobres”, são os alvos principais de razzias policiais, revistas e pedidos de identificação, tanto nas ruas, nos meios de transporte, como em bares e até aeroportos internacionais, como em Madrid ou Londres. Tais abordagens são muitas vezes, vezes demais, acompanhadas de violência gratuita e mesmo de “fabricação” de delitos, desde a caracterização de argumentação veemente e stress como desacato indo até posse de drogas.



Essa é, infelizmente, a regra em Londres, Paris, Madrid, Nova York ou Rio de Janeiro. É fácil para as classes médias brancas, para os grupos sociais facilmente identificáveis como “membros da ordem” – famílias brancas, com crianças em férias e executivos com ternos caros, valises de couro e iPeds - desdenharem da brutalidade da abordagem policial. Eles não são os alvos.



Estão socialmente protegidos pelas usos, aparência e objetos identificadores de status social “superior”. Porém, para aqueles que são sistematicamente abordados pela polícia ou pelo fiscal do metrô, ônibus ou trens em razão de cor, aparência ou origem social/racial/nacional, e/ou local de residência, o sentimento de raiva e de frustração é muito poderoso. Por que o jovem Amadou Diallo, de 22 anos, foi morto em frente do prédio em que residia no Bronx (Nova York) com 41 tiros disparados por policiais (em plena era da chamada “Tolerância Zero”)? Pela simples razão de ser negro e pobre. A justiça americana, em fim, reconheceu isso, depois de anos de proteção dos assassinos. Em 1998, não bastasse a morte de Diallo nas circunstâncias havidas, o jovem imigrante negro Abner Louima foi preso pela polícia de Nova York e torturado horas seguidas em uma delegacia. No caso de Louima a tortura foi acompanhada de atos de depravação sexual, com a empalação do jovem haitiano negro dentro de uma delegacia de polícia de Nova York.


Paris: a polícia de Sarkozy


O que ocorreu em Clichy-sur-Bois, subúrbio de Paris em 2005, foi muito próximo de Los Angeles, 1992. A abordagem da polícia francesa resultou na morte de dois jovens “de cor” eletrocutados quando se escondiam da polícia (junto a uma caixa de força) ao voltarem de um jogo de futebol. Um deles chamava-se Bouna Traoré e tinha 15 anos e o seu companheiro era Zyed Benna, de 17 anos. Por que tamanho medo da polícia? Os jovens temiam a prisão a partir de falsas alegações, horas na delegacia e o que a imprensa independente denominou na época de “feared interrogation” – tudo sob o incentivo do então ministro francês do interior, Nicolás Sarkozy. A notícia da morte brutal dos jovens, da forma de abordagem policial e da sistemática prática de “interrogatórios intimidatórios” contra minorias – embora “mestiços” ou “negros” a maioria dos jovens era tão francesa, como Zidani ou Thierry! – deu-se um brutal levante social no país, com mais de 10 mil veículos queimados, postos policiais atacados e escolas – um ícone da falta de esperanças – e destruídos.



Na ocasião, malgrado a violência dos protestos, a imprensa mundial falou em “émeutes sociales”, “civil unrest” ou, no máximo”, “riots”. Estávamos longe da avalanche de denominações do tipo “baderna” e “vandalismo” como a mídia se referiu ao levante social britânico em 2011 ou a mídia brasileira se refere, sistematicamente, aos protestos de trabalhadores.



Podemos muito bem – resguardando o clima emocional e psicológico em face dos terríveis atos terroristas em Londres em 2005 – apontar como exemplo a abordagem brutal e sem desculpas da polícia londrina no caso Jean-Charles de Menezes no metrô de Londres e seu trágico desfecho, como um estranho padrão de abordagem policial para estrangeiros na “civilizada” Inglaterra.



Em vários países, como no Brasil, Espanha, Grécia e Chile a redemocratização que sucedeu o fim das ditaduras, foi incompleta e parcial, não existindo verdadeiros processos de democratização de instituições do Estado, como é o caso da(s) polícia(s). Estas continuaram com seu pessoal, seus procedimentos e suas doutrinas e táticas de ação. Assim, embora a ditadura e o autoritarismo tenham sido substituidos por um Estado de Direito, no âmbito institucional continuaram a evoluir “microfascismos”, que muitas vezes interessam ao próprio Estado liberal como forma de controle social.



As ações dos policiais “encapuçados” espanhóis interrogando jovens ou da brutalidade da polícia do Rio de Janeiro são consequência direta desta paternidade ditatorial da polícia e, mesmo, de práticas fascistas que permeiam estas instituições desde o período ditatorial. Em São Paulo, após exemplos de brutalidade pornográficos (invasão da USP com violência seletiva contra alunos negros; ataque contra a população do bairro popular de Pinheirinhos com estupros e espancamentos, ação na Cracolândia) a direção superior da autoridade de segurança paulista publicou um longo auto-elogio à sua participação no golpe militar de 1964 [4].



Polícia: uma instituição fascistizante



Vemos assim como na cultura institucional de nichos específicos do Estado liberal de Direito – para além da polícia, poderíamos citar a rede hospitalar pública, os abrigos de sem-teto ou mesmo a escola - subsiste um forte foco fascistizante que explode em violência ao confrontar-se com manifestações de protesto ou simples resistência civil nas ruas das grandes cidades. Em alguns casos, como no Rio de Janeiro, a ação policial “deriva” fortemente em direção ao crime organizado e da conspiração contra o Estado democrático quando se organiza em entidades criminosas, mesmo terroristas, enfrentando e assassinando representantes do poder público, como juízes, promotores e deputados. Este é o caso das chamadas “milícias” do Rio de Janeiro.



Em Totenham, em agosto de 2011, não foi diferente. A abordagem da polícia britânica contra um jovem “de cor” culminou no seu fuzilamento pelos policiais sob alegação de reação armada. A família ficou 36 horas sem informações e sem acesso ao corpo e, por fim, a vítima foi criminalizada, acusado de narcotraficante e de reação armada, sem qualquer prova cabal por parte das autoridades públicas. A foto antiga do jovem – sem qualquer relação com o evento-, em uma pose planejadamente desafiadora foi exibida pela polícia como prova de seu caráter criminoso. Tratava-se da exibição de uma foto privada, num país que resguarda a imagem de criminosas notórios e que se recusou a publicar as fotos ou filmes de Jean-Charles “pulando” a catraca do metrô ou com o casaco onde esconderia “suas bombas”. Entretanto, no caso de Totenham a foto foi publicada na Internet em poucas horas. Mas, do que isso: a foto exposta da vítima não é nada diferente das poses vitoriosas de um bom goleador após um gol no adversário, de roqueiros em palcos ou de ícones policiais da tv e cinema nos seriados da FoxNews ou da TRU TV. Trata-se de uma forma de linguagem corporal típica de jovens de classe média baixa, os mesmos que tatuam caveiras e vestem capuz e roupa preta. Trata-se de uma cultura de abrangência social e etária, ampla, quase global. Nada mais do que isso. Mas, isso foi exposto como prova da periculosidade de Mark Duggan, um “mestiço” de 29 anos, morto com vários tiros pela policia londrina sem qualquer razão aparente. Da mesma forma, até hoje, a polícia londrina recusou-se a publicar as fotos dos policiais que atiraram em Mark Duggan.



O que há de comum no conjunto destes casos? Em primeiro lugar a abordagem violenta e atemorizadora da polícia; em seguida a seleção dos alvos policiais, com uma forte conotação racial – em todos os casos (Los Angeles, Paris e Londres, mas, poderia ser também o Rio como no caso do “Menino Juan” ) os policiais eram brancos e as vítimas eram “de cor”. Temos mais agravantes, infelizmente. Nos três casos a polícia mentiu e buscou claramente encobrir seus erros – baseados em supostos racialistas –, criminalizar a vítima e recebeu cobertura dos seus superiores e dos políticos em cargos de administração. Em Los Angeles somente após os terríveis incêndios de bairros inteiros e da divulgação do vídeo de espancamento de Rodney King tomaram-se medidas – paliativas! – contra os policiais. Em Paris o ministro do interior de então, e hoje presidente da França, Nicolas Sarkozy, não só obstruiu qualquer exame de procedimentos da polícia contra os jovens em Clichy-sur-Bois, como ainda montou uma campanha eleitoral açulando a xenofobia e a criminalização de imigrantes como estratégia eleitoral para ganhar a presidência. Em Londres a polícia, os seus dirigentes e os líderes políticos mentiram sistematicamente em duas ocasiões: em primeiro lugar mentiram no caso Jean-Charles, transformando um esperançoso jovem trabalhador em terrorista suicida e mentiram, de novo, desta feita, simulando a reação armada de Mark Duggan em Totenham.



A vítima como criminoso



No caso de Mark Duggan cometeram um grave crime de encobrimento, destruição e forjaram provas: para isso atiraram com suas próprias armas contra o carro da própria polícia, para simular um ataque que não houve. No caso do Menino Juan, no Rio em 2011, a polícia mentiu sobre as condições dos disparos, acusou a vítima de ser traficante e o poder público foi de uma incrível inépcia nas investigações, na busca do corpo e mesmo na necropsia, recusando um reconhecimento cadavérico [5]!



Temos aqui, finalmente, alguns pontos de síntese e comparação: os métodos de abordagem policial são baseados em uma série de preconceitos de classe média, voltados principalmente para as pessoas de cor, pobres e miseráveis; as autoridades encarregadas de controlar a polícia nada fazem para “educar” os agentes policiais no trato de minorias e mesmo – o que é um dever! – de jovens delinquentes, responsáveis por pequenas infrações ou crimes menores. Sistematicamente a policia forja provas, destrói evidências e, quando isso está fora do alcance da mídia, mantém-se impune. Na maioria das vezes, e isso é muito inquietante, a própria extração social da polícia é muito próxima daqueles que sofrem abordagens brutais. Trata-se, para citar o poeta (e, apesar disso, antropólogo intuitivo, quando diz que “são quase brancos dando porrada na nuca de quase pretos” ) de uma ampla recusa de partilhar identidades, gerando na recusa do “outro próximo”, e conveniente, a negação do seu próprio “eu” social, cultural e étnico. Trata-se, claramente, de matar no “outro” o “eu” que repilo em mim mesmo.



Para além da deficiência do Estado e de suas instituições no processo de formação de suas polícias, há ainda uma espécie de expiação subconsciente quando a polícia violenta, bate e mata “quase brancos” num exercício de auto-afastamento do fantasma de sua própria possibilidade de pauperização e marginalização, reafirmando um novo status social só muito recentemente, e de forma precária, conquistado. Ao bater no outro – igual, seja racialmente, seja socialmente, na borda do precipício das desigualdades sociais insuperáveis – o policial abate o fantasma de seu próprio destino.



A ambiência social e econômica e a psicologia coletiva devem ser trazidas para a luz da análise da violência de massas nas sociedades do tempo presente. As tensões entre as comunidades étnicas, o isolamentos dos grupos e a decidida política adotada nos últimos cinco anos de rejeição total do multiculturalismo (na Alemanha, Itália e Inglaterra, principalmente), aliada a crise econômica europeia, são o pano de fundo, de uma lado, dos motins sociais dos últimos anos. Por outro lado, há outro risco, neste momento, de emergirem nichos de microfascismos nas instituições do Estado, aceitando perante a cólera e a fúria dos jovens – tratada como caso de polícia e não como fenômeno social -, a construção de uma sociedade policial como o nosso futuro.



NOTAS

[1] Teixeira Da Silva, Francisco C. “Terror e Crime Organizado no Rio de Janeiro” In: Teixeira Da Silva, F.C. e Chaves, Daniel ( Orgs). Terrorismo na América do Sul. Rio de Janeiro, Multifoco, 2011, p. 285 e ss.



[2] Valência, Espnaha: “El jefe de policía se refiere a los estudiantes como "el enemigo"” In: http://ccaa.elpais.com/ccaa/2012/02/20/valencia/1329764951_838007.html.



[3] É bastante comum uma heroicização da brutalização dos cidadãos pelas mídias conservadoras atuais. Este é o caso do canal televisivo ( cabo ) TRU que leva ao ar horas e horas de ação policial que pouco escondem truculência, violação de direitos civis e armadilhas legais contra grupos sociais vulneráveis.



[4] Em 28/01/2012 a Secretária de Segurança de São Paulo retirou do ar a página (que ela mesmo havia criado) com elogios ao golpe civil-militar de 1964. Mais uma vez a Secretária de Segurança Pública de São Paulo busca escrever a sua própria versão da história do país. Depois de elogiar e justificar o golpe civil-militar de 1964 – em razão “do combate contra a política sindicalista” do Presidente João Goulart – a secretaria de Estado de Segurança insiste em falar em “revolução” feita ao lado do povo e das FFAA. Ao contrário, não há qualquer menção de que o Governo Jango foi democraticamente eleito e constituído, legitimado por um amplo plebiscito popular, e que cabia, se fosse ao caso, ao Congresso Nacional fazer oposição ao governo, indo, no limite, ao pedido de impedimento do presidente do país.





 
(*) Professor na Universidade Federal do Rio de Janeiro.

 
FONTE: Carta Maior
 
 

Nenhum comentário:

Postar um comentário