terça-feira, 17 de janeiro de 2012

Vozes da guerra

Escrita por Judith Thompson, peça "Palácio do Fim", que estreia na sexta em SP, usa fatos reais para discutir o conflito no Iraque

 

GUSTAVO FIORATTI
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA



A dramaturga Judith Thompson conhece o Exército americano como poucos.


Ela sabe que o M16 é um fuzil que funciona a gás comprimido. E também conhece de cor a descrição técnica do estrago que um projétil disparado por essa arma pode fazer na cabeça de, por exemplo, um iraquiano.


Para escrever "Palácio do Fim", peça que estreia na sexta no Sesc Consolação, com direção de José Wilker, a autora leu pilhas e mais pilhas de relatos sobre a Guerra do Iraque, passando por reportagens e manuais de armamento de infantaria leve.


Os três monólogos reunidos na peça partem de fatos reais ligados ao conflito.


O primeiro é baseado na história de Lynndie England (interpretada por Camila Morgado), recruta norte-americana que posou para fotos durante sessões de tortura praticada contra iraquianos na prisão de Abu Ghraib.


O segundo resgata o suposto suicídio do cientista britânico especializado em armas biológicas David Kelly (Antônio Petrin). E o terceiro recorre ao relato feito por Nehrjas al Saffarh (Vera Holtz), uma ativista do Partido Comunista iraquiano torturada pela polícia secreta de Saddam Hussein (1937-2006).


Thompson relaciona a peça a fatos recentes. "Fico feliz em ver como a internet pode divulgar esse vídeo [de marines americanos urinando no corpo de afegãos]. É o que tento fazer como dramaturga", diz ela, referindo-se a um tipo de teatro que se aproxima do gênero documental.


A pesquisa dá suporte para um fio narrativo ficcional e de veia psicológica.


Os comentários que a autora leu na internet a respeito da feiura da oficial Lynndie determinam o conflito central da personagem na peça. Ela se incomoda sobretudo com a malhação pública deflagrada pela ampla divulgação de sua foto na rede.


"Uma imagem fotográfica ou uma frase é sempre um ponto inicial para mim", diz Thompson. "Especialmente se não consigo compreender esse ponto inicial, sou levada à pergunta: 'Como ele pode ter acontecido?'."


Ela coloca a palavra "como" ("how", em inglês) em letras garrafais na entrevista, concedida por e-mail.


Para Thompson, o teatro pode servir como ferramenta para redimensionar o impacto da notícia numa audiência habituada a ver o horror na TV e nos jornais.


Ela conta que já notou como alguns espectadores deixam a sala de teatro durante a apresentação de "Palácio do Fim", especialmente no momento em que Nehrjas descreve a tortura sofrida também por seus filhos.


"Mas aquela mulher, assim como tantos no mundo, passou por aquilo. Então, a única coisa que eu peço é para que a história dela seja ouvida", explica a dramaturga.


Ao apresentar o monólogo do cientista David Kelly, a autora questiona a formulação da própria história.


Kelly foi pivô de denúncias sobre a falsificação de relatórios de armas de destruição em massa durante o governo de Tony Blair. Para a autora, sua morte foi mal explicada.


"Foi suicídio ou foi assassinato?", o próprio personagem questiona, dando voz à dúvida compartilhada por outros artistas, como Thom Yorke, líder do Radiohead, que trata da morte do cientista na canção "Harrowdown Hill", do álbum "The Eraser" (2006). A banda de Yorke é citada na peça.


Wilker decidiu montar o espetáculo após assistir a uma montagem em Nova York em 2008 -a peça estreou no Canadá em 2007.


"A gente pode até assistir ao espetáculo com o distanciamento de quem vê um país estrangeiro em guerra, mas também podemos ver a peça com a distância mínima de quem olha para um vizinho sendo assassinado cruelmente, queimado com um pneu numa favela do Rio", diz ele.


Wilker comenta ainda que o que o atraiu no texto não foi tanto o aspecto político e de denúncia, mas a maneira poética como Thompson trata do assunto. "A poesia teatral que ela domina, isso me parece fascinante", completa.


"Palácio do Fim" é o espetáculo carioca com mais indicações ao Prêmio Shell. Concorre em direção (Wilker), melhor atriz (Vera Holtz), iluminação (Maneco Quinderé) e figurino (Beth Filipecki).


Colaborou MARCO AURÉLIO CANÔNICO, do Rio

Vera Holtz, Camila Morgado e Antônio Petrin.


PALÁCIO DO FIM

QUANDO sex. e sáb., às 21h, e dom., às 18h; até 11 de março
ONDE teatro Anchieta - Sesc Consolação (r. Dr. Vila Nova, 245, tel. 0/xx/11/3234-3000)
QUANTO de R$ 8 a R$ 32
CLASSIFICAÇÃO 14 anos

 
FONTE: Folha de São Paulo, 17 de janeiro de 2012.
 
 

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