sexta-feira, 7 de outubro de 2011

Enem joga água no moinho da mercantilização

"O ENEM não é uma ferramenta adequada para a avaliação das escolas, dos estudantes e dos professores e, tampouco, dos sistemas."


Por Roberto Leher*


No mesmo contexto em que professores e demais trabalhadores da educação básica protagonizam um dos mais generalizados ciclo de greves da história recente do país, em prol da reivindicação do piso salarial nacional de irrisórios R$ 1.187,00, o MEC divulgou os resultados do ENEM. A repercussão nas corporações da mídia foi bombástica: o desempenho dos estudantes das escolas privadas foi muito superior ao das públicas. Entre as mil melhores escolas do país, apenas 7,4% são públicas, conforme o noticiário. O corolário de tal aferição, apresentada como rigorosa e cientifica, é que as escolas privadas são muito superiores às escolas públicas.



Do ponto de vista das estratégias dos fundos de investimentos que vêm entrando no setor dos negócios educacionais no ensino médio e do Movimento Compromisso Todos pela Educação, interessado em assumir, de modo mais orgânico, o controle das escolas mantidas às expensas do Estado, por meio das Escolas Charters, o anúncio do MEC, tal como apresentado, certamente foi comemorado efusivamente.

 

Entretanto, o ranking possibilitado pelos indicadores do INEP dificilmente pode ser compreendido como resultante de procedimentos científicos, afinal, a comparação é despropositada em diversos sentidos. Dos 8,4 milhões de matrículas no ensino médio, apenas 11,8% são privadas (INEP, 2010). Isso quer dizer que a comparação se dá, grosso modo, entre a massa mais pobre da população jovem e o andar de cima da pirâmide social. Mesmo entre as escolas públicas tidas como de excelência, muitas delas já adotam o sorteio como critério de ingresso, favorecendo a participação popular. As escolas privadas ditas de excelência, ao contrário, utilizam mecanismos de seleção que, previamente, discriminam os de melhor escolarização.

 

Para piorar, o uso de provas padronizadas como critério de avaliação oculta que, nas escolas públicas, como os professores são hiperexplorados (em estados mais ricos do país, como Rio de Janeiro e Minas Gerais, os docentes graduados fizeram longas greves para saírem, respectivamente, do patamar de R$ 720,00 e R$ 550,00), a rotatividade é enorme. Milhares de professores pedem exoneração todos os anos no país. Em muitas escolas, os estudantes cursam o período noturno (34,4% das matrículas, INEP, 2010) e, a exemplo de outras tantas escolas diurnas, raramente logram mais do que 3 horas e 30 minutos de aula/dia. Laboratórios, biblioteca, espaços para atividades artísticas e culturais, horário complementar para estudos, raramente existe essa infraestrutura básica nas escolas públicas estaduais. Ademais, em virtude da falta de docentes, é usual que as turmas que possuem aulas de matemática não têm aulas física; as que têm física não garantem aulas de química, e assim sucessivamente. Nada disso é avaliado. O discurso é que a avaliação do “produto”, por si só, modifica (misteriosamente) essa áspera realidade. Claro que, sub-repticiamente, um pouco de repressão pode ajudar, como, por exemplo, punições salariais para os docentes das escolas de baixa pontuação.

 
ENEM tornou-se peça publicitária


Como os testes padronizados foram lastimavelmente incorporados por várias universidades públicas, muitas escolas privadas utilizam os resultados do exame, agora disponibilizados por unidade escolar pelo INEP, como peça publicitária. Por isso, tais escolas selecionam, previamente, os estudantes que vão fazer o ENEM, inclusive promovendo treinamento, o que obviamente distorce os resultados.



Também as virtudes democráticas do exame são questionáveis. Como admite o ministro Haddad, o exame pretende “enxugar” o currículo, propósito que, obviamente, terá repercussões no ensino médio público: a extraordinária simplificação dos conteúdos interessa, de fato, à classe trabalhadora? O que o MEC entende por simplificação curricular? Em que fóruns tal objetivo vem sendo discutido com rigor? Como observou o professor Carlos Roberto Jamil Cury em recente debate, o fato é que, na prática, o ENEM (os seus descritores, os tipos de questões) assume o caráter de elemento unificador do currículo da educação básica nacional. E as corporações que atuam na venda dos kits pedagógicos rapidamente aprenderam a manejar essa avaliação simplificada, logrando “bons resultados” educacionais que passam a ser vendidos massivamente nas escolas públicas.



Outro aspecto a considerar é que a sua abrangência nacional favorece a mobilidade estudantil dos que possuem melhores meios econômicos. Assim, por exemplo, grande parte dos estudantes de medicina da Universidade Federal de Rondônia (UNIR) não é do estado. Os estudantes do topo da pirâmide social podem apresentar suas pontuações em qualquer parte do país. Caberia investigar se, a médio prazo, não teremos maior concentração de renda nos cursos de maior prestigio e, também, de jovens provenientes das regiões de maior concentração da renda.



Ferramenta inadequada


O ENEM não é uma ferramenta adequada para a avaliação das escolas, dos estudantes e dos professores e, tampouco, dos sistemas. A aferição é descontextualizada e contribui para o esvaziamento (simplificação) do conhecimento trabalhado na escola. O seu mérito é privatista. Ao empobrecer o ensino médio, reduz o custo do serviço educacional vendido pelas privadas e pelas corporações que vendem kits pedagógicos e aperfeiçoa a captação de estudantes para as escolas de ensino médio e superior privadas. Beneficia os estudantes de maior renda nos cursos mais concorridos das instituições públicas, contribuindo para a seletividade social. Para favorecer a expansão privada no ensino médio, desqualifica as instituições públicas, ocultando os determinantes dos baixos resultados dos seus estudantes e, finalmente, desobriga o Estado de promover políticas que de fato assegurem a escola pública de elevada qualidade para todos. É como se todo problema educacional fosse de natureza gerencial a ser resolvido por meio de prêmios e castigos.



Finalmente, o ENEM não altera a existência do funil que separa a juventude proveniente dos segmentos populares da universidade pública. Por isso, podemos concluir que em uma sociedade comprometida com a garantia de sistema educacional público, gratuito, unitário, laico e universal, exames padronizados como o ENEM seriam impensáveis. Mas em uma sociedade cindida socialmente e em que o setor de venda de serviços educacionais é parte do bloco de poder, o ENEM é uma preciosa prebenda para as corporações.

 

*Professor da Faculdade de Educação da UFRJ


1 “O fim do vestibular não é o fim do mérito’’. Entrevista com ministro Haddad, OESP, JC e-mail 4317, de 08 de Agosto de 2011.


2 O CNE: organização e conflito, C.R. J. Cury e L. A. Cunha, promovido pelo Grupo de Estudos dos Sistemas Educacionais (GESED) e Observatório da Laicidade de Estado (OLE), Faculdade de Educação da UFRJ, 20/9/11.

 
FONTE: Jornal da Adufrj - 722 - 26/09/2011 

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