quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Carta a um jovem jornalista “polêmico”



Por João Gabriel Vieira Bordin

 
O monopólio da grande mídia, sobretudo da mídia televisiva, sobre o conteúdo e a forma da informação a que a maioria da população tem acesso, é um dos pilares fundamentais da dominação de classes no contexto da sociedade capitalista contemporânea. Trata-se do meio principal através do qual os valores e as concepções ideológicas necessárias à legitimação de condições sociais extremamente desiguais são produzidos e reproduzidos.

 
Dentro desse quadro, a literatura também sofre a influência de elementos que são ou deveriam ser estranhos à atividade literária em si. Os best-sellers consumidos em massa constituem um exemplo emblemático da literatura tornada mercadoria e, enquanto tal, produzida com o único objetivo de render lucro.

Guia politicamente incorreto da História do Brasil, do “jornalista” Leandro Narloch, integra essa categoria. Vendida com a idéia de que se trata de uma obra crítica a respeito da história do Brasil, trata-se, na verdade, de uma peça ímpar de doutrinação ideológica. É o velho conservadorismo, travestido de ciência. Se não fosse o estado de embrutecimento intelectual em que a mídia conservadora nos deixou, essa obra seria motivo de pilhéria. Mas, desgraçadamente, ela encontrou larga aceitação entre a “intelectualidade” brasileira. É necessário, portanto, que olhemos mais a fundo e identifiquemos as motivações por trás da obra.

 
Após pôr termo à leitura do livro, não resisti em escrever algumas linhas com relação às teses nele expostas. Confesso que a tom provocativo produziu em mim tal necessidade. Seja como for, o próprio conteúdo da argumentação em si mesmo é já uma grande provocação; coloca o leitor numa posição de alteridade com relação aos seus próprios pressupostos e – por que não? – pré-conceitos, instando-o a se afastar das suas crenças mais profundas e, com isto, repensá-las à luz da análise de um quadro histórico, social e cultural, bastante mais complexo do que aqueles fatos reificados e simplificados do lugar-comum das crenças preconceituosas, enraizadas por costume e tradição. Nesse tocante, portanto, faço ao Narloch um elogio. O mérito da obra resume-se, essencialmente, nessa vontade crítica (será sincera?), cujo objetivo deve ser desmistificar os fatos históricos como são interpretados pela leitura do senso-comum, esta perspectiva que repousa sobre a tradição. O problema é que o autor não cumpre com seus propósitos, como uma leitura crítica deixa manifesto já prima facie.

 
O processo histórico deve ser compreendido respeitando-se sua complexidade intrínseca, seus movimentos contraditórios e antagonistas. Ao mesmo tempo, deve-se preservar o discurso científico das concepções banais e reducionistas, cujos efeitos podemos ver numa leitura da história que a compreende em termos de relações causa-efeito rígidas e unilaterais, ou de maniqueísmos que opõem uma luta do bem contra o mal etc. Em suma, todo “bom-mocismo”, todo enaltecimento aos heróis, deve ser expurgado de uma análise científica e conseqüente da história. Não é necessário recordarmos que essas criações míticas servem a propósitos e interesses concretos, seja de construir uma identidade nacional, seja de preservar uma tradição ou para legitimar certas condições sócio-históricas contemporâneas. Tais criações são sempre anacronismos, isto é, são frutos de um olhar ao passado através dos olhos do presente, a fim de se encontrar no passado as raízes daquilo que se quer justificar e legitimar no presente.

 
E é só. O livro possui esse mérito tão-somente, mais nada. O resto é um ingente desserviço (não para a classe cujos valores o autor defende) para o intelecto e para o povo. A “obra” não passa de uma coletânea de lugares-comuns e ideologias apologéticas do capitalismo e da ética burguesa, de seus valores e das suas supostas verdades. Daí porque eu inevitavelmente não entendi os objetivos que o autor diz colocar a si mesmo. Ele diz que intenta desconstruir o mito histórico corrente, fundado em certos interesses e valores, mas, precisamente ao contrário, não faz mais do que reiterá-los. O capítulo sobre os comunistas deixa isso escandalosamente patente (é lá que Narloch realmente mostra as garras). Ao invés de desconstruir crenças infundadas o autor as aprofunda, devido, em primeiro lugar, às suas convicções ideológicas, e em segundo porque ele acredita que a história oficial foi escrita, quando não por marxistas, por ideólogos das lutas por igualdade racial, social etc. Assim, Narloch não elimina da história os heróis e os anacronismos de uma análise que procura atribuir valores contemporâneos aos personagens e fatos do passado, antes erige novos heróis – e, conseqüentemente, novos vilões.

Com Narloch, somos levados a descobrir que os ingleses foram os grandes mocinhos do século XIX, interessados em transformar o Brasil (e o resto do mundo) em novas nações soberanas e independentes do seu capital e da sua política, e que, do mesmo modo que os ingleses no século XIX, os norte-americanos foram os mocinhos do século XX, lutando pela democracia e pela livre-iniciativa contra a influência sediciosa dos comunistas totalitários. Por outro lado, os grandes vilões teriam sido, junto com os comunistas na política, os... professores de história das décadas de 1960 e 70, ideólogos marxistas-comunistas-leninistas. Pelo que se pode depreender daí, o autor não teve intenção alguma de desmistificar e rever a história oficial, mas simplesmente de reescrevê-la a partir da sua própria perspectiva ideológica. E o mais intrigante desta empresa é que ele parte do pressuposto de que a história oficial é ideologia marxista e não pelo contrário, ideologia burguesa. Se a ideologia burguesa hoje pretende encobrir suas mazelas, seu passado violento e criminoso pretende, portanto, conferir dignidade às minorias excluídas e às classes exploradas por ela, isto não é devido a um real arrependimento, ou a uma visão romântica, mas devido ao fato de que há grande interesse em se manter como dona da moral e da verdade, encobrindo ou legitimando sua história passada através da voz das suas vítimas.

Mas é no capítulo dedicado aos comunistas que Narloch se trai, deixando evidentes as motivações ideológicas que o levaram a escrever seu livro. Ele não só reproduz o discurso apologético burguês de que o comunismo é necessariamente mau (mau com “u” mesmo), vide tantas revoluções defraudadas ou degringoladas ao longo século XX, e o capitalismo é necessariamente bom, como também trata a idéia de revolução social (ou seja, de transformação de uma ordem social dada em outra) como uma utopia nociva para o desenvolvimento “pacífico” da sociedade (capitalista). O comunismo é, além disso, anacronicamente comparado ao messianismo religioso – aliás, argumento semeado invariavelmente pela ideologia corrente, e que está na ponta da língua de qualquer defensor da sociedade capitalista. É evidente, para qualquer estudioso mais capacitado de história e de ciências sociais, que esses pontos de vista não estão fundados de modo algum em argumentos científicos, mas na apologia vulgar.


 
Um estudioso sério, ao contrário de um retórico agitador e panegerista da ideologia burguesa (como é o caso de Narloch), dificilmente seria levado a discorrer sobre aquilo que não é de seu conhecimento. Nesse sentido, Narloch não deveria ter se atrevido a falar do marxismo, já que é notório que não sabe nada da matéria em questão. É simplesmente absurdo e inconseqüente o modo como ele traça uma linha direta e reta entre a teoria materialista da história proposta por Marx e os rumos tomados pela antiga URSS durante o período stalinista. Percebe-se rapidamente que o autor desconhece completamente a história do marxismo, assim como das suas conseqüências políticas e sociais históricas (nem sempre coerentes), limitando-se a propalar os chavões recozidos da apologética burguesa. Quando ele fala de Cuba, por exemplo, passa por alto (consciente ou inconscientemente?) o fato de que o país, antes da revolução, havia sido praticamente um entreposto colonial norte-americano desde sua libertação da metrópole espanhola, mantido sobre o tacão da política imperialista que assumia a América Latina como um seu quintal, e que Fulgêncio Batista era um ditador corrupto que transformou a ilha num bordel para magnatas ianques.


 
E se ele continuasse a argumentar, não seria temeridade aventar que, para Narloch, a miséria atual de Cuba é culpa do socialismo e da não-liberdade à “criatividade” da iniciativa privada, e não do embargo criminoso mantido à ilha, cujo isolamento econômico condenou o país a permanecer atrasado como havia sido desde o período colonial.

 
Impressionante mesmo é a maneira absurda pela qual ele justifica a tortura dos militares brasileiros: eles torturaram porque eram inexperientes na luta contra-guerrilheira. Enquanto os comunistas brasileiros eram ineptos, boçais, estúpidos mesmo, protagonistas de uma comédia (como o trapalhão Prestes), os militares eram apenas inexperientes em matéria de contra-insurgência, de sorte que não lhes restou outra opção do que caçar os comunistas mediante delações e tortura (ou seja, tiverem que se rebaixar ao nível imoral dos “terroristas”), posto que eram incapazes de vencer no corpo-a-corpo. O recrudescimento do regime, outrossim, foi responsabilidade dos guerrilheiros, cujas ações comprometiam a “ordem” do país, de modo que os militares no poder não tiverem outra opção do que baixar o AI-5.

 
Enfim, é desnecessário continuar a argumentar. À exceção de algumas passagens interessantes, nas quais Narloch apresenta pesquisas acadêmicas inovadoras (o que, portanto, não é mérito dele), seu livro não passa de um festival de teses descabidas, asserções infundadas e defesas apaixonadas da ideologia burguesa, do livre mercado, do imperialismo dos países desenvolvidos, da inferioridade dos povos ameríndios, da maldade e da incivilidade congênita dos povos explorados. É evidente que não existem vítimas (num sentido simplista) na história, não existem nem heróis, nem vilões. Ninguém pode negar o fato de que, por exemplo, a guerra era parte da estrutura social base da sociedade indígena, assim como o era a escravização para os negros africanos. Mas fechar os olhos para o fato de que a influência externa dos europeus, que entravam à época na fase histórica do capitalismo, desestruturou essas culturas milenares; ignorar que onde penetrava o dinheiro diluíam-se todos os costumes e valores culturais dos povos pré-capitalistas, destruindo todas as suas relações sociais; é não apenas compactuar com uma visão pouco justa da história, como também agir de má-fé. Não haveria de ser de outra maneira, isto é, essas culturas necessariamente seriam apropriadas e subsumiriam sob a nova organização social destina a conquistar o mundo, o capitalismo. Entretanto, não avaliar as conseqüências concretas da modernidade para esses povos, é pretexto para caracterizar todos os homens como maus, sejam eles oprimidos ou opressores, legitimando assim a guerra de todos contra todos. Para esse tipo de pensamento, se sempre haverá opressão e sofrimento na história, é razoável que sejamos nós os que oprimem e não os oprimidos.

Em suma, Narloch age de má-fé. Não há absolutamente nada de científico no seu livro. Pelo contrário, tudo o que encontramos nele é um festival de preconceitos típicos de uma elite tão boçal quanto estúpida como o é a elite brasileira. Não é à toa que o livro teve grande aceitação entre os veículos midiáticos empresariais, condição necessária para se tornar um best-seller. Narloch não é um jornalista, mas, como diria Marx, um sicofanta da ordem capitalista, isto é, um mero defensor desta ordem, de onde extrai as migalhas que os grandes burgueses lhe dão. Sua visão pouco correta e altamente deturpada da história, pretendendo-se apoiar em estudos científicos, mas que na verdade põe a nu a verdadeira ideologia burguesa, de fato não poderia ser diferente: um jornalista como Narloch, que trabalhou para a Veja, certamente não pode ter uma visão de mundo distinta da linha editorial dessa execrável revista. Afinal, existe um veículo de comunicação mais patologicamente ideológico do que a Veja? Qualquer um que tenha trabalhado nela não pode ser um historiador ou jornalista sério, mas deve necessariamente resumir-se a um defensor barato do pensamento da direita conservadora e odiosa desse país.

 
João Gabriel Vieira Bordin é cientista social.

 
 

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