domingo, 20 de março de 2011

Entre serpentinas e rebeliões

Luiz Ricardo Leitão


O carnaval é uma festa pagã do Velho Mundo que remonta à Idade Média. Desde sua origem, ela representa no imaginário popular uma autêntica inversão de valores, aquele lapso de tempo em que os servos da sociedade feudal se tornavam senhores, livrando-se, ainda que momentaneamente, das pesadas atribulações que a opressiva estrutura social lhes impunha. Ao longo dos séculos, o evento assumiria outras conotações no continente europeu, como se pode ver nos famosos desfiles de máscaras de Veneza, mas continuaria a ser uma espécie de catarse em outras partes do planeta, em especial aqui no Novo Mundo, onde o regime colonial subjugou povos nativos, africanos e asiáticos, privando-os dos direitos elementares de inclusão na vida pública.

Cá em Bruzundanga o processo foi ainda mais cruel. Sob o manto do último país escravocrata das Américas, o entrudo se tornaria uma expressão fidedigna de nossa absurda iniquidade social. Afinal de contas, padecendo séculos de pelourinho e chibata, não era de se estranhar que os filhos da senzala saíssem às ruas para descarregar petardos de bosta e urina nos “foliões”, até mesmo sobre sinhô e sinhá – para pasmo das elites e ‘civilizados’ intelectuais. Há certos traços afins com Cuba, onde a escravidão vigorou até 1886 e os povos iorubas serviram como poucos à monocultura do açúcar, mas a Revolução de 1959 conferiu novos signos à festa – e o crítico Período Especial, de fato, diluiu a sua exuberância.

 
Não ouso dizer que onde não há revolução a solução é o carnaval, porque, em realidade, os dois elementos não se contrapõem – e têm decerto mais pontos de contato do que há de supor nossa tosca filosofia. É bem verdade que, enquanto estamos cá a deleitar-nos com confetes e serpentinas, os povos árabes seguem no norte da África e no Oriente Médio a promover rebeliões que inquietam as potências do Ocidente, sequiosas do petróleo que se espalha sob aquele solo e temerosas de que o sentimento anti-imperialista seja mais um combustível motriz das revoltas populares.

Para disfarçar seu mal-estar e confundir a tal ‘opinião pública’, Washington lançou o mantra da “luta por democracia”, saudando as revoluções que promovem o fim das tiranias e exaltando o papel da internet no processo. Essa lenga-lenga, é óbvio, visa a embotar o caráter anticapitalista da revolução árabe e, sobretudo no caso do Egito, subestimar o peso de novos grupos sociais no país, não apenas a Irmandade Muçulmana (em que as mulheres merecem destaque à parte), mas também os sindicatos (que desde 2008 organizam expressivas greves gerais e hoje lutam por um reajuste de R$ 124 para R$ 375), os microempresários (com forte presença feminina nas áreas de informática, confecção e tinturaria) e até a elite acadêmica de classe média (advogados, juízes, diplomatas).

 
Quem dera os Orkuts e Facebooks fossem tão revolucionários quanto Tio Sam deseja fazer crer. Se assim fora, já estaria tudo resolvido em Bruzundanga, um dos campeões mundiais de acesso ao ciberespaço. Não importa sua natureza, tais ferramentas requerem forças sociais organizadas para que surtam efeito – e não poderemos abdicar jamais desta tarefa, sob o grave risco de que o fim de um regime de exploração e opressão não represente uma efetiva mudança na ordem social.

 
De qualquer modo, entre serpentinas e rebeliões, sugiro aos nossos foliões que guardem um pouco de energia para a quaresma. Precisamos botar o bloco na rua para coibir tanta maracutaia que grassa de norte a sul do país, a começar pela turma da pelota e o obscuro imbróglio CBF & Rede Globo, que ameaça implodir de vez o decadente futebol brasileiro. Aliás, quem leu a “defesa” de Ricardo Teixeira contra a punição imposta à CBF pelo escândalo da arbitragem em 2005, em que a entidade considera os torcedores apaixonados meros “analfabetos funcionais”, deveria redobrar sua carga bélica contra o mafioso, sem esquecer, porém, outros coronéis dignos de muita bosta e urina, desde a tchurma do Planalto (Sarney, Kátia Abreu & Cia.) até a malta do agronegócio, que, se não for detida, em breve converterá Bruzundanga numa imensa fazenda de soja e de gado. Evoé, Baco!


Luiz Ricardo Leitão é escritor e professor adjunto da UERJ. Doutor em Estudos Literários pela Universidade de La Habana, é autor de Noel Rosa – Poeta da Vila, Cronista do Brasil e Lima Barreto: o rebelde imprescindível.

Crônica originalmente publicada na edição 419 do Brasil de Fato.

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