terça-feira, 15 de dezembro de 2009

O mundo se rende a Morales


Por Diogo Cunha e Taysa Coelho

Quando Evo Morales foi eleito pela primeira vez presidente da Bolívia, a elite daquele país, assim como os governos dos grandes países capitalistas, torceu o nariz. Primeiro presidente indígena a ser eleito lá e integrante de um partido socialista – Movimento ao Socialismo (MAS) –, Morales também gerava polêmicas ao defender o cultivo da coca – planta de enorme importância na econômica local -, por seu posicionamento antiestadunidense e alinhamento ao governo bolivariano de Hugo Chávez.

Assim como as névoas andinas no verão, as polêmicas foram sendo dissipadas ao longo do tempo, à medida que foram sendo implementadas as políticas sociais e econômicas de seu governo. Além de reeleito no primeiro turno, com mais de 60% dos votos, Morales também saiu vitorioso nas eleições do Poder Legislativo, em que o MAS garantiu dois terços das vagas no Congresso Nacional. O líder conquistou a confiança da população de menor poder aquisitivo, através da implementação de programas sociais, e dos mais abastados, com as visíveis melhoras na economia, que, mesmo com a crise internacional, apresentará o maior crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) da América Latina, segundo as projeções do Fundo Monetário Internacional (FMI), atingindo 3%.

Mesmo com o aumento na quantidade de votantes das classes média e alta, ainda há sérias divergências entre as províncias majoritariamente indígenas e aquelas dominadas pela elite econômica boliviana, situadas a leste do país, também conhecidas como “províncias da meia-lua”.

No Brasil, o governo Morales ficou marcado pela crise do gás. O líder estatizou duas refinarias pertencentes à Petrobras e, em troca, realizou grandes investimentos no país. Opositores alegam que esse tipo de comportamento pode afastar investimentos estrangeiros, ao passo que seus defensores acreditam que o maior controle dos hidrocarbonetos ajudaria o Estado na distribuição de renda. (...)

Daniel ChavesHistoriador e pesquisador do Laboratório de Estudos do Tempo Presente/UFRJ e um dos autores do livro “Bolívia – passos da revolução”
“A implementação da nova Constituição – que assegura mais direitos e maior participação dos indígenas na política (...) - muda, rigorosamente, em tudo a vida da população boliviana.”
Em comparação às antigas políticas assistenciais dos últimos governos bolivianos, não há sombra de dúvidas de que Evo Morales fez muito. Sempre houve a necessidade de ampliar os mecanismos de assistência social na Bolívia, frente à carência da população miserável que, por sua vez, gera enorme pressão política pela mudança - grande bandeira política do governo. Há de se observar, entretanto, que a perda de apoio político dos sindicatos de médicos e professores indica uma insatisfação sobre o soldo mensal e sobre os mecanismos de implementação dessas mudanças, o que é quase natural, visto que o orçamento do país ainda está se reordenando e que é muito difícil contemplar as agendas de todos os movimentos e grupos sociais.
Depois das quase proféticas falas de George Bush (pai) e de Francis Fukuyama, que, associadas, prescreveriam que viveríamos em um mundo do livre mercado e da democracia liberal, com os EUA jogando o seu papel de policial global da humanidade, já deu para percebermos que o quadro não será bem esse. A história não acabou com o fim da bipolaridade comunista-capitalista. O projeto que surge da ruptura pós-Guerra Fria, o neoliberalismo, se tornou ébrio nessa celebração e produziu governos irresponsáveis, que previam programas políticos acima do limite sustentável e da própria vontade popular. O fenômeno da substituição de neoconservadores por governos de esquerda - com uma nova visão de desenvolvimento econômico, pautado no programa social e sustentável planejado a partir de um Estado atuante que busca atingir os interesses tanto da população quanto do mercado - é a resposta a isso. Em cada país, isso tem uma assunção diferenciada, mas, via de regra, o nacionalismo mais ou menos à esquerda, o anti-imperialismo e o antineoliberalismo são as chaves para se compreender as novas disputas por recursos naturais, desenvolvimento e autonomia.
Em relação à questão do controle cada vez maior dos hidrocarbonetos, simpatizantes do presidente reeleito alegam que o maior controle dos hidrocarbonetos pelo Estado ajudaria a aumentar as rendas, ao passo que seus opositores dizem que a atitude pode ser positiva para a distribuição, porém afastaria investimentos e implementações de melhorias técnicas. A tensão essencial, contudo, não se dá tanto nessa direção, muito focada nas disputas dos grupos sobre o controle do processo. Se o governo converter essa preeminência estatal em comunitária e popular, terá sucesso e a revolução realmente ocorrerá. Caso contrário, como já vimos em 2000 e 2003, o governo enfrentará uma oposição que não é frágil, como a liberal regionalista: o povo. E aí a coisa pode ficar complicada.
Já em relação ao aumento na porcentagem de votos obtidos pelas províncias opositoras, sem dúvida isso tem a ver com o esvaziamento da oposição, hoje muito frágil. Porém, a própria solidez e a maturidade com que Evo conseguiu transparecer para a população também reforçam o quadro: o presidente está progressivamente deixando de ser, para a Bolívia e para o mundo, apenas um sindicalista, para se transformar em um chefe de Estado relevante.
A implementação da nova Constituição – que assegura mais direitos e maior participação dos indígenas na política, dando mesmo status ao sistema judiciário oficial e à Justiça dos índios e descentralizando o poder em quatro níveis de autonomia (provincial, regional, municipal e indígena) -, aprovada no primeiro mandato de Morales e cuja implementação será sua principal prioridade legislativa, muda rigorosamente em tudo a vida da população boliviana, desde os símbolos nacionais até a estruturação jurídica do poder em cada cantão do país. O ‘processo de mudança’ não conta mais com uma oposição negativa nas regiões e nos parlamentos, e agora está nas mãos do partido do governo. Tornar-se uma nova oligarquia ou revolucionar o país é o desafio do MAS, nesse sentido.”

Edson Peterli Guimarães Professor associado do Instituto de Economia/UFRJ
“Enquanto os preços das commodities estiverem altos, os investimentos requeridos podem ser promovidos, mas como será no caso de uma queda de preços?”
O governo de Evo Morales tem se destacado tanto no aspecto social quanto no econômico. Na realidade, os dois andaram juntos, pois as mudanças sociais foram decorrentes, em grande parte, das vantagens econômicas obtidas pelo governo Morales com o aumento dos preços de suas commodities, em especial do gás e, em menor escala, de metais como o estanho, e que permitiram a implantação de políticas públicas e sociais de muita relevância.
O que se pode ver, entretanto, é que o primeiro governo de Morales foi muito marcado pela necessidade de afirmação da sua capacidade de, como indígena, dirigir um país. Tanto é assim que a nova Constituição da Bolívia, marcada por grandes polêmicas, e que veio a ser aprovada em um referendo, passou a tratar a Bolívia como um país plurinacional. Ou seja, como um país formado por várias nações. É como se houvesse diferentes povos vivendo juntos, mas sendo um país unitário, no sentido de que o governo central é forte. Parece um contrassenso, mas é assim que está estabelecido e é essa situação que tem criado tantas dificuldades entre a Meia-Lua (região onde, predominantemente, está localizada a elite econômica do país) e o governo central, uma vez que este tem centralizado recursos e distribuído de forma aleatória e muitas vezes em prejuízo dos não aliados.
De todo modo, é fácil prever que, passada esta primeira fase e consolidado o poder nas mãos do presidente, o segundo governo Morales terá a possibilidade de demonstrar mais claramente a que veio, tanto para o bem quanto para o mal, pois se a Bolívia hoje passa por uma boa fase, não se pode saber até quando ela assim permanecerá.
A situação econômica na Bolívia é bastante complicada. Há setores da indústria que sequer existem. É um país onde a revolução industrial, nos moldes da revolução industrial inglesa no século XVIII, ainda não se estabeleceu.
O governo de Evo Morales tem se mostrado dirigista e dá sinais de que acredita que o Estado pode cumprir a função de promover a revolução industrial, desenvolvendo a indústria pesada cuja demanda derivada (entre empresas) geraria um processo de acumulação endógeno do capital. A questão é como financiar ou induzir esse processo de desenvolvimento industrial. Enquanto os preços das commodities estiverem altos, os investimentos requeridos podem ser promovidos, mas como será no caso de uma queda de preços?
A questão da industrialização da Bolívia esbarra na dificuldade de expansão de um mercado interno de consumo de bens industrializados e da geração de renda doméstica via exportação, que criaria a demanda adequada ao processo industrial pretendido. No primeiro caso, o que se vê é que a Bolívia está passando por um processo de criação de mercado consumidor, porém ainda sem uma demanda que gere um efeito de ‘escala’. É um velho paradigma ainda não de todo absorvido pelos policy makers (formuladores de políticas): o que vem primeiro, a demanda ou a oferta? Na verdade, o que se deseja é um aumento de ambos, que deve ocorrer, no caso das economias menos desenvolvidas, com a intervenção de um terceiro elemento que é o Estado. Devido ao tempo existente entre a criação da oferta e a construção da demanda, realizadora dos lucros, decorrentes das vendas, o Estado acaba sendo o fiador desse processo. Mas como poderá o Estado boliviano financiar esse desenvolvimento eternamente? Por isso a questão do gás é tão importante: se esperava que esse recurso promovesse esse ‘fundo’ para a industrialização.
Já para a segunda possibilidade de industrialização, que seria a exportação, como ocorreu no Sudeste Asiático, a pouca infraestrutura constitui um entrave. A falta de tecnologia e o povo ainda com níveis de escolaridade muito baixos não propiciam a constituição de produtos competitivos. Uma das saídas para essa segunda opção é justamente o Mercosul, que deveria, a exemplo da União Europeia, instituir um Fundo de Promoção Econômico. No caso europeu isso se deu com o Fundo Comum Europeu. No nosso, chegou-se a cogitar sobre alguns instrumentos multilaterais, como o Banco do Sul, mas que, contudo, se parecem muito mais com bancos de investimento do que propriamente fundos para promoção da economia.
Sobre o gás, o grande problema da Bolívia é para onde escoar sua produção. Os principais mercados consumidores do Cone Sul apresentam grandes dificuldades: o Chile tem uma crise histórica com a Bolívia devido à Guerra do Pacífico, o que fez com que decidisse importar gás de outros países e via GNL (muito mais caro); a Argentina tem preços tabelados; o Peru deixou de ser importador e passou a exportador de gás depois das descobertas de Camisea; e o Brasil apresenta um futuro promissor com as suas últimas descobertas de gás que têm ocasionado sobras.
As únicas opções seriam a ‘industrialização’ desse gás, com a construção de usinas de ureia (matéria-prima para outros fertilizantes), ou o polo gás-químico em Puerto Suarez, na fronteira do Brasil, porém elas apresentam problemas de escala ou de falta de mercado (os bens produzidos são destinados a outras indústrias). Ademais, outras opções se mostram distantes em decorrência da pouca infraestrutura do país, como o gás veicular ou o consumo industrial.
A nacionalização das reservas de gás e petróleo significou a renegociação dos termos dos contratos que já existiam entre a YPFB (a estatal boliviana) e as empresas que exploravam e produziam petróleo e gás na Bolívia. Os contratos ficaram muito parecidos com os nossos contratos de concessão em que se tem um programa exploratório mínimo de trabalho e prazo para começar a produção de tais produtos. O que aconteceu é que os termos econômicos mudaram. Foram aumentados os valores das participações governamentais, basicamente dos royalties, e exigido que se acelerasse o início da produção.
Sobre os investimentos estrangeiros, no curto prazo, devem aumentar, em decorrência dos contratos de gás negociados com as empresas e que exigem altos investimentos ou a perda dos direitos de explorar tais jazidas. No médio prazo, contudo, é mais difícil prever como se dará a abertura para investimentos estrangeiros. Não tanto pela questão atual, e mais por uma questão antecedente que é a de definir qual será o grau de abertura para a participação do investimento privado, aí incluído o nacional e o estrangeiro. A questão aqui não é de onde virá o investimento, mas sim se será possível a realização de investimentos por entes privados.
Cada vez que se faz uma nacionalização ou que se diz que determinado setor é monopólio do Estado ou será realizado diretamente pelas suas empresas, o que se vê é que os investimentos privados caem ou até mesmo desaparecem, mas isso é uma decisão estatal. Na Bolívia, o que se discute não é o grau, qual é o tamanho ideal da participação privada, mas sim a natureza, quais setores econômicos podem ou não ter participação de entes privados. Contudo, no caso boliviano se tem um caminho claro, que é o da ‘socialização’ dos investimentos, através das nacionalizações e desapropriações, que por si sós afastam propositalmente o investimento privado.


FONTE: Olhar Virtual, UFRJ, Edição 280, 15/12/2009.

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